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"Humanamente, não consigo entender a tortura", afirma Denise Fraga, protagonista do drama político "Hoje", concorrente em Brasília

NEUSA BARBOSA

Do Cineweb, de Brasília

30/09/2011 14h43

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Primeiro filme inédito da competição principal do Festival de Brasília, com cópia recém-finalizada na Itália, o drama “Hoje”, da cineasta paulista Tata Amaral (“Antônia”), exibido nesta quinta, retomou a questão de memória e dos desaparecidos políticos na ditadura brasileira (1964-1985) sob um ponto de vista intimista e pessoal – no caso, o da protagonista, Vera (Denise Fraga), que procura superar as dolorosas consequências de sua militância, depois de receber uma indenização que lhe permitiu comprar um pequeno apartamento.

Atriz de teatro e televisão conhecida especialmente por sua veia cômica – como a revelada na bem-sucedida peça “Trair e Coçar É só Começar”, em que atuou por seis anos -, Denise Fraga domina a cena do filme numa atuação intensamente dramática. No debate do filme nesta manhã, ela admitiu: “Este é sem dúvida o papel mais complexo que representei”.

Para ela, aliás, a divisão entre cômico e dramático “faz cada vez menos sentido. Uma boa história entretém e faz o que quer”.Denise sabe, no entanto, da inevitabilidade desses selos e classificações do trabalho dos atores. Por isso, elogiou a “coragem da Tata Amaral de chamar uma atriz considerada cômica para este trabalho”.

Incompreensão da tortura

O pano de fundo da história, adaptada da novela “Prova Contrária”, de Fernando Bonassi, é a tortura, sofrida no passado tanto por Vera quanto pelo seu companheiro Luiz (o ator uruguaio César Troncoso, de “Cabeça a Prêmio”) – e que fazem dela relatos arrepiantes no filme.

Denise comentou que, embora não tenha nenhuma vivência pessoal nem familiar deste assunto, trata-se de um tema que a inquieta. “Acho muito difícil digerir essa história da tortura, o fato de ela ser possível, a sofisticação de métodos que atingiu, ela não ter sido penalizada. Queria entender o que se passava na cabeça daquelas pessoas. Como atriz, investigo o humano. E humanamente, não consigo entender”.

O fato de o co-protagonista ser uruguaio, que cria uma estranheza a princípio, também foi considerado positivo pela atriz no sentido de “criar um símbolo de uma união latino-americana dessas histórias terríveis” – já que países como Uruguai, Chile e Argentina viveram também ditaduras militares e processos repressivos recentemente.

A nacionalidade do ator, a princípio rejeitada por Jean-Claude Bernardet, um dos roteiristas de “Hoje”, terminou fazendo sentido para ele. “Quando soube que o ator seria estrangeiro fiquei um pouco preocupado. Esta história, aliás, só poderia ser brasileira ou até uruguaia, porque em nenhum dos dois países houve uma resolução desse passado da ditadura. Esse passado apodrece dentro dos personagens”, apontou.

BASTIDORES DO FILME ''HOJE''

Com ele concordou a diretora Tata Amaral: “Nós não enfrentamos nossos fantasmas, não identificamos nem punimos nunca nossos torturadores”.

Dedicado a Luiz Alves de Souza, o filme incorpora também um componente autobiográfico da diretora, mas sem vinculação política. Trata-se de seu ex-companheiro, pai de sua filha Caru – uma das produtoras do filme -, a quem Tata não teve, por muitos anos, coragem de contar que ele havia se suicidado. Uma dificuldade de enfrentar o próprio passado que marca especialmente o perfil da personagem de Denise na história e permite a oscilação de versões e climas ao longo da narrativa, criando dúvidas sobre o personagem de Luiz.

Pluralidade de visões

Chamado a comparar “Hoje” com outros filmes recentes sobre a ditadura brasileira, como “Cabra-Cega”, de Toni Venturi, Jean-Claude ponderou: “Acho que os filmes têm semelhanças, mas fazem opções narrativas totalmente opostas. Para começar, o filme do Toni recorre a reconstituições do passado, nós não”.

Nesse aspecto, tanto Jean-Claude quanto Tata destacaram ter recorrido a projeções de imagens para materializar o passado dos personagens, fugindo deliberadamente de qualquer tentativa de reconstituição, já que a intenção era evocar apenas suas memórias dos fatos vividos.

Outra diferença de “Hoje” em relação a “Cabra-cega”, para o roteirista, está na imagem dos militantes da guerrilha. “No filme da Tata, é uma visão mais cética. No do Toni, é quase heróica”. Essas divergências, aliás, o roteirista considera normais: “A memória de uma ditadura nunca será trabalhada de uma única maneira. Há necessidade de uma pluralidade de pontos de vista para elaborar no presente este passado”.