Filho de Orlando Villas Bôas bateu à porta de Fernando Meirelles para convencê-lo a produzir "Xingu"
Se "Xingu" existe, é culpa – ou mérito – de Noel Villas Bôas. Filho caçula do sertanista Orlando Villas Bôas, foi Noel quem enxergou que a história de seu pai e tios daria um filme – e foi bater à porta de ninguém menos que o cineasta Fernando Meirelles.
“Eu estava assistindo a uma entrevista do Fernando Meirelles para a Marília Gabriela – eu já tinha gostado muito de ‘Cidade de Deus’ – e pensei ‘esse cara é muito bom’. No final da entrevista, me dei conta de que tinha história para contar do Orlando, do Cláudio e do Leonardo. Isso foi num domingo. No final da semana, reuni algumas coisas – um livro e um filme – e fui bater na porta da O2 [produtora de Meirelles]. Ele me atendeu mesmo sem me conhecer, conversamos um pouco e ele ficou com o material”, conta Noel, 36.
A visita a Fernando Meirelles aconteceu em 2005 e Noel ainda teve que insistir um pouco até que o cineasta abraçasse o projeto, que se transformaria na produção dirigida por Cao Hamburger e protagonizada por Felipe Camargo, João Miguel e Caio Blat.
Advogado e filósofo de formação, Noel mora com a mãe, Marina, em uma casa no Alto da Lapa, em São Paulo, tomada por objetos indígenas e imagens que remetem ao trabalho de seu pai e tios – de quadros e fotografias nas paredes a uma tartaruga que perambula pelo lugar, presente do cacique Raoni. Além disso, um salão nos fundos da residência ainda abriga todo o acervo dos irmãos Villas Bôas, que Noel planeja transferir para o recém-criado Instituto Orlando Villas Bôas, sua atual ocupação, e inclui preciosidades como peças encontradas por indígenas da região do Xingu cuja datação é de milhares de anos e cartas escritas à mão a Orlando pelo Marechal Cândido Rondon (1865-1958), um dos pioneiros em desbravar o Centro-Oeste e estabelecer contato com povos indígenas da região, que as assinava “Um abraço do velho seu admirador”.
Apesar das condições precárias, o acervo está em bom estado, salvo uma ou outra peça quebrada pelos filhos de Orlando Filho, irmão mais velho de Noel, e algumas flechas que ele e o irmão tomaram por brinquedos e atiraram nos telhados dos vizinhos da casa em que viviam nos Jardins.
Os irmãos Villas Bôas
Os irmãos Orlando, Leonardo e Cláudio Villas Bôas, vividos no filme "Xingu" pelos atores Felipe Camargo, Caio Blat e João Miguel, respectivamente
Nascidos no interior de São Paulo, na década de 1910, Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Bôas vieram para a capital por conta do trabalho do pai. Após a morte dele, nada mais os prendia à cidade e decidiram juntar-se à Marcha para Oeste, projeto de ocupação do interior criado pelo governo Getúlio Vargas em 1943. Na primeira tentativa de alistamento, foram rejeitados por serem muito urbanizados. Pouco tempo depois, Cláudio e Leonardo foram ao interior de Goiás para fazer uma nova tentativa, dessa vez passando-se por sertanejos analfabetos, e acabaram sendo aceitos. Orlando, mais velho dos três, então com 29 anos, largou o emprego em São Paulo pouco depois para juntar-se aos irmãos.
O objetivo inicial da expedição de vanguarda Roncador-Xingu, braço da Fundação Brasil Central, da qual tomaram parte, era abrir caminho e desbravar as áreas mostradas em branco nas cartas geográficas brasileiras. De início, os índios eram vistos como obstáculos a serem superados. No entanto, os Villas Bôas, à frente da expedição, preferiram conduzir o contato com as tribos da região de forma pacífica e foram tocados por sua riqueza cultural. Entenderam logo que era necessário garantir-lhes algum isolamento e iniciaram os esforços que culminariam na criação do Parque Nacional do Xingu, em 1961, primeira terra indígena homologada pelo governo brasileiro.
Foi justamente durante as negociações para a criação do parque que Leonardo teve que se afastar da expedição por ter se envolvido com uma índia da tribo Kamayurá, fato que chegou ao conhecimento da imprensa e causou escândalo na época. O mais jovem dos irmãos Villas Bôas morreria pouco depois, em 1961, aos 43 anos, devido a problemas cardíacos. Cláudio e Orlando ainda se dedicariam à questão indígena até suas mortes, o primeiro em 1998 e o segundo em 2002.
O legado
A morte de Orlando, há dez anos, foi um dos fatores que motivou Noel a querer que a história da família se transformasse em filme. “Quando papai estava vivo, mesmo quando estava hospitalizado, em qualquer questão indígena, sempre se tocava no nome dele. Depois que ele morreu, muito rápido começam a tirar essas pessoas de cena, mesmo sendo pessoas que escreveram a política indigenista atual do Governo Federal desde a década de 1960. Eu pensei ‘isso não vai acontecer, deixa eu me virar’”.
Por esse motivo, na mesma época em que procurou a O2, começou a trabalhar na criação do Instituto Orlando Villas Bôas, que existe juridicamente desde o fim de 2011, mas ainda não está funcionando nem tem sede própria. Esta é a atividade principal de Noel hoje em dia.
Para Noel, preservar a memória da família também significa trazer visibilidade para a questão indígena, algo que seu pai e tios fizeram em vida e que levou ele e o irmão – que morou até os cinco anos no Alto Xingu com os pais – a manterem forte ligação com os índios da região mesmo depois da morte de Orlando. Noel chegou inclusive a integrar o Conselho Indigenista da Funai por duas vezes: uma como suplente do pai e outra como titular, logo após sua morte. “Esse cargo não é remunerado. Deve ser o único que existe no Governo Federal em que as pessoas pagam para trabalhar”, brinca.
O filme
Noel já assistiu “Xingu” três vezes – no escritório da O2, na pré-estreia na aldeia xinguana Yawalapiti, no dia 24 de março, e na pré-estreia realizada em São Paulo três dias depois. “A sensação mais gostosa foi justamente ver que eles [os índios] realmente gostaram”, diz. Ele conta que também gostou do filme, mas estava bastante ansioso pela reação do irmão, que só assistiu “Xingu” na pré-estreia paulista. Para seu alívio, Orlando Filho aprovou o filme.
“Por ser uma ficção baseada em fatos reais, a parte que descreve o Orlando, o Cláudio e o Leonardo ficou livre para o Cao entender como ele achou que deveriam ser os conflitos entre eles. É claro que a dramatização é um pouco mais intensa do que o que aconteceu na vida real. Mas achei ótimo”, diz.
Uma parte da trama que poderia desagradar à família é a que trata do índio Kaiabi que Cláudio adotou e que o filme dá a entender que poderia ser filho legítimo dele. Mas nem isso parece desagradar Noel. “O filme dá a entender que o Tawarru era filho legítimo do tio Cláudio. Aí tem várias versões. A que eu sempre conheci é que o Pionin e a Kayulu deram o Tawarru para o meu tio criar porque o tio Cláudio os criou como filhos e o Tawarru chamava o meu tio de avô. Era tão intenso esse contato que ele criou o Tawarru também, trouxe para São Paulo, registrou como filho e ele morreu com 21 ou 22 anos num acidente de carro. E a outra versão é que ele de fato seria filho do meu tio Cláudio. Na verdade, para mim é indiferente. Se for filho do meu tio, tanto melhor. Seria uma honra ter uma relação mais direta com os índios do Xingu”, diz.
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