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Letícia Spiller interpreta cega assanhada em longa paraibano "Tudo que Deus Criou"

A atriz Letícia Spiller em cena do filme "Tudo que Deus Criou" - Divulgação
A atriz Letícia Spiller em cena do filme "Tudo que Deus Criou" Imagem: Divulgação

Sérgio Alpendre

Do UOL, em Curitiba

05/06/2012 07h00

O longa paraibano "Tudo que Deus Criou", de André da Costa Pinto tem ao menos um trunfo para chamar a atenção: a presença da atriz global Letícia Spiller. Como uma cega de trinta anos que está atrás de sua primeira experiência sexual com um homem, a atriz se reinventa e se coloca dentro de um outro patamar em sua carreira com o filme, que faz parte da Mostra Olhares Brasil do Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba.

A personagem de Letícia, contudo, divide o protagonismo com dois outros: um jovem que se traveste à noite para ganhar a vida e um trabalhador dos correios que, depois de ficar viúvo, começa a ter um caso com tal jovem.

Outro papel importante é o de Guta Stresser, ainda que menor e menos essencial para a trama que o de Spiller. Direto de "A Grande Família", Guta faz uma pobre dona de casa com sérios entraves sexuais. Ela está bem nesse papel, provando que tem potencial muito maior do que seus trabalhos anteriores no cinema e na televisão fariam supor. Percebe-se na tela o quanto a doação de Guta ao papel foi intensa.

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    Guta Stresser em cena de "Tudo que Deus Criou"


Mas a surpresa mesmo é ver Letícia Spiller em um papel ousado, com uma lente de contato falsa que chama a atenção, talvez excessivamente, para sua cegueira. Ela vai frequentemente ao correio para ouvir histórias e poemas que o viúvo lê para ela com paciência e a tensão de quem também carrega alguns traumas.

Num certo dia, ela começa a se oferecer para ele. Faz perguntas indecorosas, até se oferecer diretamente para fazer sexo com ele (sexo, não amor, é o que ela faz questão de dizer). Não é uma libidinosa, ou uma ninfomaníaca. É apenas uma mulher atraente que retardou o processo de descoberta sexual por pelo menos uns quinze anos ("ninguém deseja uma cega").

Num jantar em que convida os dois amantes, ela abre os botões da blusa, coloca os seios para fora e pede para que cada um coloque a mão sobre um deles. Eles, que são amantes em segredo, colocam, mas vão aproximando suas mãos até que elas se toquem sobre os seios dela. É um dos melhores momentos do filme, além daqueles em que o jovem, travestido ou não, conversa com seus amigos transexuais. São cenas em que diretor e elenco estão à vontade, completamente entregues à dramaturgia suavemente amadora proposta por André da Costa Pinto.

O filme todo, apesar disso, é desigual, para dizer o mínimo. Em alguns momentos, beira o constrangedor. Se ganha na pequena ousadia de seu relato almodovariano (baseado em história real, o que sempre é meio frustrante nesse tipo de drama), e no fato de contar com uma "darling" global num papel quente, perde pelo ar titubeante de uma série de situações. Em muitos momentos, por exemplo, a câmera se move sem muito critério, como se estivesse apenas flutuando no ar - algo que lembra os trabalhos filmados em digital do diretor russo Alexander Sokurov (de "Arca Russa"), ainda que com bem menos desenvoltura.

O longa passa por questões sérias, como estupro, assassinato motivado por brutalidade masculina, preconceito sexual, repressão da sexualidade de mulheres e homossexuais e prisão doméstica metafórica como um fardo para uma mulher.

Poderia ser um grande trabalho, e de certa forma é ótimo ver um longa filmado em Campina Grande passar com algum alarde em um festival internacional estreante. Mas, apesar das boas intenções de se lidar com essas questões sem cair no moralismo óbvio, o filme fica no meio do caminho entre a indigência e o despojamento.