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Roteirista de "Cidade de Deus" diz que até hoje não conseguiu escrever algo tão bom

Bráulio Mantovani diz que críticos "massacraram" o "Cidade de Deus" na época do lançamento - Moacyr Lopes Junior/Folhapress, Ilustrada
Bráulio Mantovani diz que críticos "massacraram" o "Cidade de Deus" na época do lançamento Imagem: Moacyr Lopes Junior/Folhapress, Ilustrada

Daniel Solyszko*

Do UOL, em São Paulo

30/08/2012 07h00

Roteirista de outros filmes brasileiros de sucesso como "Tropa de Elite", "Tropa de Elite 2" e "O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias", Bráulio Mantovani diz que não conseguiu escrever um roteiro tão bom como o de "Cidade de Deus" até hoje.

Em entrevista ao UOL, ele contou que, na última vez em que assistiu ao filme, foi surpreendido por uma virada em seu próprio roteiro. "O que parecia uma cagada virou uma grande sacada. Pensei: 'Porra! Como é que eu fiz isso?'. E logo depois pensei: 'Quando eu é que eu vou conseguir escrever um roteiro tão bom assim novamente?'. Até agora, não consegui", disse.

A carreira de Bráulio Mantovani como roteirista deslanchou em 2002, com "Cidade de Deus". Até então, ele havia trabalhado em séries de TV e no curta "Palace 2", sua primeira parceria com Fernando Meirelles. Nos últimos dez anos, o roteirista trabalhou em filmes de sucesso com diretores consagrados como José Padilha (em "Tropa de Elite" e "Tropa de Elite 2", de 2007 e 2010), Walter Salles e Daniela Thomas (em "Linha de Passe", de 2008), Bruno Barreto (em "Última Parada 174", de 2008) e Cao Hamburger (em "O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias", de 2006).

Na entrevista, respondida por e-mail, Mantovani relembrou seu envolvimento com a produção de "Cidade de Deus" e como vê o filme hoje, além de comentar a nova parceria com Meirelles.

UOL: Você acompahou as filmagens [de Cidade de Deus]?
Bráulio Mantovani: Um vez, acompanhei o Fernando, o César [Charlone, diretor de fotografia] e alguns atores a uma das locações, onde eles fizeram ensaios rápidos. Em outra ocasião, visitei o set de filmagem. Nos dois casos, fui passear. Mas havia, sim, uma interação com a produção a distância. O Fernando às vezes me ligava ou enviava e-mails com ideias que surgiam nos improvisos com os atores. A gente conversava e alterava o roteiro para aproveitar essas ideias. Não me lembro de fazer grandes mudanças.

Participou de toda a produção do longa?
Na montagem, acabei participando um pouco mais intensamente quando o Daniel Rezende (montador) e o Fernando perceberam que a parte final do filme (a guerra entre Mané Galinha e Zé Pequeno) não funcionava bem. Boa parte desse trecho foi "reescrita" na montagem, a seis mãos. A gente trocava a ordem das cenas, eu reescrevia trechos da narração, o Fernando mesmo fazia a voz, o Daniel experimentava, testava. Foi um momento muito especial.

Penso que filmes como esses ajudam a esquentar o debate, mas não resolvem problemas. Na minha juventude, acreditava em arte engajada. Hoje, sou um niilista

Bráulio Mantovani, roteirista

Você voltou a assistir ao filme? O que acha dele hoje em dia?
Eu vi o filme três vezes. A última delas foi há cerca de dois anos, em uma palestra sobre cinema brasileiro na Costa Rica. Eu tinha esquecido muitas coisas e em um determinado momento entrei em pânico, pensando que havia uma tremenda cagada no roteiro (não lembro bem o que era). Mas aí, uma virada inesperada me surpreendeu e o que parecia uma cagada virou uma grande sacada. Pensei: "Porra! Como é que eu fiz isso?". E logo depois pensei: "Quando eu é que eu vou conseguir escrever um roteiro tão bom assim novamente?". Até agora, não consegui.

Mudaria alguma coisa?
O roteiro está longe de ser perfeito. Penso que o meu roteiro tem uma falha muito grave que é a de não mergulhar profundamente na infância de Zé Pequeno. Desde a primeira vez em que vi o filme pronto, senti falta de uma cena (que nunca escrevi) em que Dadinho (Zé Pequeno quando criança) se defrontasse com uma situação de extremo perigo, de morte iminente, que acabasse bem graças a uma arma, a um tiro, a uma morte. Eu não digo isso pensando em simplificar o personagem, tornando-o uma vítima de uma sociedade injusta e violenta. Ao contrário: penso que a crueldade dele, a maldade descontrolada poderiam se tornar mais complexas se ele fosse apresentado como uma criança indefesa, amedrontada, à beira da morte e que é, subitamente, salva pelo poder de uma arma de fogo. Eu queria muito ter escrito uma cena com esses elementos no roteiro. Mas só percebi isso depois de ver o filme pronto.

Você ainda fez os roteiros dos dois “Tropa de Elite”, que também discutem os problemas das favelas do Rio. Acha que filmes assim podem mudar a realidade?

No lançamento de 'Cidade de Deus', fomos massacrados pela maior parte dos críticos. Um deles sentenciou que o filme seria esquecido em três meses. Dez anos depois, estamos aqui falando do longa

Bráulio Mantovani, roteirista

Eu penso que filmes como esses ajudam a esquentar o debate sobre certos temas, mas não resolvem problemas nem ajudam a mudar nada. Na minha juventude, acreditava em arte engajada. Hoje, sou um niilista. Acho que o mundo já foi pior do que é, mas as pessoas são o que são. Histórias boas merecem ser contadas. E se forem bem contadas produzem algum efeito na consciência e na percepção de algumas pessoas. Eu já disse anteriormente que prefiro os filmes que me fazem sair do cinema perturbado. Esse efeito não está associado a temáticas sociais. Acho que as qualidades de "Cidade de Deus" e de "Tropa de Elite 2" (o primeiro "Tropa" não é bom como o segundo) que provocam alguma reflexão ou inquietação no público são de natureza estética. São filmes que deram certo porque conseguiram dar forma a pensamentos e sentimentos relevantes. Mas o segredo está na forma, não nos temas.

Em tempo, gostaria de lembrar que no lançamento de "Cidade de Deus" nós fomos massacrados pela maior parte dos críticos. Um deles sentenciou que o filme seria esquecido em três meses. Dez anos depois, estamos aqui falando do filme. E não só no Brasil. Quantos outros filmes abordaram o mesmo tema e foram tão longe? Arte é forma. Não tem jeito.

Voltando ao Meirelles, ele afirmou em entrevista recente que pretende voltar a filmar no Brasil, e que você faria o roteiro. Pode falar algo sobre o projeto?
Eu terminei de escrever recentemente um filme para o Fernando dirigir. Mas é um projeto inglês, sobre o magnata Onassis. Por enquanto, não temos outro projeto em vista nem o compromisso de que o próximo (se houver) tenha que ser brasileiro. Eu prefiro sempre trabalhar no Brasil. Porém, se for com o Fernando, trabalho até na China.

VEJA O TRAILER DO FILME "CIDADE DE DEUS"


(*Colaboração de Mariane Zendron)