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"Além das Montanhas" desromantiza a fé com olhar clínico da vida em um convento romeno

Cena do filme "Além das Montanhas", de Cristian Mungiu - Divulgação
Cena do filme "Além das Montanhas", de Cristian Mungiu Imagem: Divulgação

Chico Fireman

Do UOL, em São Paulo

31/10/2012 03h16

O cinema romeno parece ser feito por uma panelinha que divide o mesmo projeto estético: câmera na mão, planos longos, cenário funcional, tudo em função de um retrato realista e frio de personagens e do mundo de hoje. Mas a proposta do grupo tem funcionado bem. Nos últimos anos, o mundo conheceu algumas pérolas como “A Morte do Sr. Lazarescu”, “Polícia, Adjetivo” e “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias”. Este último foi dirigido por Cristian Mungiu e saiu de Cannes com a Palma de Ouro.

Cinco anos depois, mantendo esta fórmula, o cineasta reaparece com “Além das Montanhas”, uma das atrações da 36ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. No filme, Mungiu se volta para a fé com o mesmo olhar desromantizado e a mesma crueza com que enxerga a gravidez em seu trabalho anterior. O longa mostra o reencontro de duas amigas que frequentaram o mesmo orfanato e tiveram destinos diferentes: uma foi embora para ganhar a vida na Alemanha e a outra virou freira.

Apesar de se dedicar longamente a explorar a relação entre as duas protagonistas, ambas premiadas em Cannes, Mungiu usa a chegada da “estrangeira” para desestruturar a vida cotidiana  de um pequeno convento da Romênia. O comportamento obsessivo da jovem desequilibra a rotina de quem vive no lugar e lança questionamentos sobre a fragilidade da fé que existe ali. O diretor nunca parece querer atacar a religião ou desmerecer a religiosidade e, sim, enxergá-las com um olho clínico.

Há uma cena que ilustra bem esse interesse de Mungiu: Alina, a “penetra” no convento, duvida que o padre tenha mesmo um amuleto sagrado, do qual só se fala porque é proibido mostrá-lo. Ele prova que o amuleto existe, mas, ao revelá-lo, o mistério se perde e leva junto o poder simbólico do objeto. Numa cena seguinte, o padre pede para que uma freira traga o amuleto, que já pode ser visto e até tocado por qualquer um. Fim da magia.

Em vários momentos do filme, personagens variados afirmam que Alina fala com vozes estranhas e  que “já não é mais ela”, mas estas supostas transformações só aparecem no filme justamente no discurso deles. Quando a câmera chega a Alina, ela fala com a exaltação natural da personagem, sem nenhum evento místico. Ao mesmo tempo, Mungiu trata estas manifestações sobrenaturais como frutos de uma histeria coletiva e utiliza as acusações para reforçar a condição de “corpo estranho” de Alina no convento. As freiras parecem realmente acreditar que uma pessoa como aquela, tão diferente, só pode estar possuída.

O desfecho do filme que promove um choque abrupto – e explícito – entre fantasia e realidade solidifica esse projeto. É como se o espectador fosse forçado a olhar por tanto tempo para um objeto até ele perder completamente seu significado e virar apenas um objeto. Sem recorrer a fórmulas simples, sem levantar a voz contra a religião, Mungiu fez um filme que afasta qualquer paixão no exame detalhado de credos e crenças.