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Tarantino mostra escravidão sem concessões em "Django Livre", seu faroeste espaguete

Novas imagens de "Django Livre", novo longa de Quentin Tarantino foram divulgadas (29/10/12) - Divulgação/Sony Pictures
Novas imagens de "Django Livre", novo longa de Quentin Tarantino foram divulgadas (29/10/12) Imagem: Divulgação/Sony Pictures

Natalia Engler

Do UOL, em São Paulo

17/01/2013 14h00

Depois de mostrar sua versão de gêneros como filmes de guerra (“Bastardos Inglórios”), de artes marciais (“Kill Bill”) e de terror B (“À Prova de Morte”), Quentin Tarantino agora homenageia o faroeste, mais especificamente o faroeste espaguete, subgênero mais violento, desenvolvido principalmente na Itália, em que o herói (ou anti-herói) é movido por motivos menos nobres, como vingança e fortuna.

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    "Os brancos me xingavam quando eu era pequeno", relembra Jamie Foxx, que cresceu no que chama de ambiente "racialmente carregado" de Terrell, no estado norte-americano do Texas. "Eu tive que lidar com isso. E justamente por ter acontecido comigo, consegui entender bem o conteúdo do roteiro de 'Django'."

Em “Django Livre”, o escravo Django (Jamie Foxx, de “Ray”) é resgatado pelo caçador de recompensas Dr. Schultz (Christoph Waltz, de “Bastardos Inglórios”), que procura três ex-feitores da fazenda a que ele pertencia. Em troca de ajuda na caçada a alguns dos fugitivos mais procurados do Texas, Schultz promete libertar Django e ajudá-lo a encontrar sua mulher, Broomhilda (Kerry Washington, de “As Mil Palavras”). A busca leva os dois até Calvin Candie (Leonardo DiCaprio), um fazendeiro do Mississipi aficionado por Mandingo --espécie de luta livre até a morte entre escravos--, que pode ser a chave para encontrar Broomhilda.

O nome do anti-herói de Tarantino é uma referência a “Django” (1966), filme de Sergio Corbucci estrelado por Franco Nero, que faz uma participação especial na produção. O faroeste espaguete --um dos mais influentes do gênero, ao lado dos filmes de Sergio Leone--também é lembrado por meio de sua música-tema, que abre o longa de Tarantino, e em uma cena hilária, que satiriza um grupo de membros do Ku Klux Klan e ressoa a famosa sequência em que o Django de Nero enfrenta membros da organização racista usando a metralhadora que guarda em um caixão.

Polêmica
Tarantino não se atém ao politicamente correto e usa e abusa da palavra “nigger” (“negro” ou “preto”, com conotação negativa), um tabu para os americanos, que costumam referir-se a ele como “the ‘n’ word” (“a palavra ‘n’”) em vez de pronunciá-la.

O termo aparece 110 vezes durante o filme, e não são só os personagens brancos que a pronunciam. Ela é usada pelo próprio Django com frequência e, em especial, pelo personagem de Samuel L. Jackson, Stephen, um escravo doméstico e dedicado a seu senhor --figura conhecida como “pai Tomás” (ou “uncle Tom”, em inglês)--, tão cruel com seus pares quanto os brancos.

Além de usar a palavra proibida, o cineasta também se atreve a mostrar sem censura violências terríveis praticadas contra os personagens negros --em uma cena, vemos dois escravos lutarem até a morte de um deles, incitados por Calvin (DiCaprio); em outra, um escravo fugitivo é destroçado por cachorros.

Estas e outras ousadias renderam ao filme críticas contundentes por parte da comunidade negra, incluindo o cineasta Spike Lee, que escreveu no Twitter: “A escravidão americana não foi um faroeste espaguete do Sergio Leone. Foi um holocausto. Meus ancestrais são escravos. Roubados da África. Eu vou honrá-los”.

A verdadeira polêmica aqui é o retrato que Tarantino traça da escravidão e do racismo nos Estados Unidos de 1858, dois anos antes da Guerra Civil, mas alguns críticos ainda batem na tecla da violência e apontam como excessivas as cenas de membros estraçalhados por tiros e sangue que jorra para todos os lados.

Por outra ótica, a vingança do ex- escravo Django contra os brancos escravizadores pode ser vista como tão catártica quanto a caçada por nazistas e o assassinato de Hitler em “Bastardos Inglórios”.

A discussão em torno do tema é complexa e espinhosa. Mas uma coisa é certa: “Django Livre” pretende ser exatamente o que Lee aponta --um faroeste espaguete, com uma boa história de vingança, protagonizada por um escravo liberto e tendo a escravidão como pano de fundo, mas ainda assim um faroeste espaguete. Além disso, Tarantino não é conhecido por mostrar o melhor lado de seus personagens.

DiCaprio e Foxx discutem em cena de "Django Livre"

Oscar, atuações e trilha
A ousadia rendeu ao filme dois Globos de Ouro (melhor roteiro original e melhor ator coadjuvante) e cinco indicações ao Oscar, incluindo melhor filme --roteiro, fotografia, edição de som e ator coadjuvante (Christoph Waltz) completam a lista.

No mais, “Django” é Tarantino como todos conhecem. Ele mais uma vez mostra seu talento como diretor de atores, extraindo uma performance memorável de Christoph Waltz, que ganhou um Globo de Ouro e está indicado ao Oscar como ator coadjuvante com seu eloquente Dr. Schultz, uma espécie de coronel Landa que trabalha para o lado certo.

Leonardo DiCaprio também merece destaque com seu odioso e mimado Calvin Candie, que não impediu o ator de ser esnobado pelo Oscar mais uma vez.

No entanto, o maior injustiçado desta temporada de premiações talvez tenha sido Samuel L. Jackson, o mais frequente colaborador de Tarantino, que consegue roubar a cena entre tantos astros com seu Stephen, ao mesmo tempo ardiloso e servil e desprovido de solidariedade pelos outros escravos.

A trilha sonora é outro ponto alto, como de costume. Ela é encabeçada por uma “colaboração” póstuma entre James Brown e 2Pac em "Unchained (The Payback/Untouchable)" e completada por quatro faixas de Ennio Morricone, o compositor de trilhas de faroeste espaguete por excelência, incluindo a inédita “Ancora Qui”.

Também contribuíram com novas canções para o filme John Legend (“Who Did That to You?”), Rick Ross (“100 Coffins”, produzida e interpretada por Jamie Foxx) e Anthony Hamilton e Elayna Boynton (“Freedom”), marcando a primeira colaboração de Tarantino com artistas para criar música original para um filme seu.