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"Jorge Mautner - O Filho do Holocausto" relembra trajetória de poeta "maldito" da MPB

Jorge Mautner em cena do longa "Jorge Mautner - O Filho do Holocausto" - Juliana Torres/Divulgação
Jorge Mautner em cena do longa "Jorge Mautner - O Filho do Holocausto" Imagem: Juliana Torres/Divulgação

Daniel Solyszko

Do UOL, em São Paulo

23/01/2013 05h00

Autêntico “maldito” da MPB, Jorge Mautner levou uma vida e uma carreira tão improváveis que sua história pedia para ser transformada em filme. Músico, poeta, cineasta, membro do Partido Comunista Brasileiro e tropicalista, não necessariamente nessa ordem, Mautner já fez de tudo e mais um pouco. “O Jorge é a pessoa que eu mais admiro. A história dele é tão diferente que parece um filme de ficção”, conta Heitor D'Alincourt, que co-dirigiu o documentário “Jorge Mautner – O Filho do Holocausto”, ao lado do jornalista e apresentador do BBB Pedro Bial, que estreia nos cinemas brasileiros em 1º de fevereiro.

O cineasta conta que conheceu o ídolo após um show no Rio de Janeiro, ainda nos anos 90. “Lembro que por volta de 1992 fui ver um show dele no Botafogo e não tinha ninguém. Foi uma coisa marcante, nos conhecemos, fomos comer uma pizza. Ele tinha acabado de voltar da Áustria, onde passou um período entre 89 e 92”, diz D'Alincourt, que acabou tocando com a banda de Mautner nos anos seguintes.

O grande ponto de partida foi o livro autobiográfico “O Filho do Holocausto”, lançado originalmente em 2006, de onde o próprio autor lê diversas passagens no filme. “O livro tocou muito o Bial, que tem essa coisa de querer ser meio poeta, e cuja família também tinha sido exilada. Trocamos muitas impressões e acabamos decidindo fazer o filme", conta Heitor. “Foi um trabalho feito em conjunto, é legal fazer em dupla, você se surpreende. Durante a produção todo mundo fez um esforço para ajudar e participar. O nome do Bial ajudou, a gente acabou tendo acesso à vários caminhos”, diz.

D'Alincourt acredita que assimilar a arte de Mautner é “mais fácil e palatável” hoje em dia, e um das intenções do filme é explorar justamente isso. “Eu acho que o Jorge ainda não atingiu o grande público”, conta. Para a grande maioria das pessoas, ele ainda é lembrado principalmente por “Maracatu Atômico”, que compôs ao lado do guitarrista Nelson Jacobina, que morreu no final do passado.

A música se tornou um grande hit na versão de Gilberto Gil em 1973 e seria redescoberta por uma nova geração após ser regravada por Chico Science e a Nação Zumbi em 1996. “A versão dele é genial. Conheci rapidamente o Chico, infelizmente ele morreu logo em seguida, conta Mautner, que é fã de maracatu e outros ritmos pernambucanos desde criança. "Meu último disco tem a participação do Pupilo, que trabalhou com ele”, comenta.

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    Jorge Mautner ao lado do parceiro musical Nelson Jacobina, morto em 2012, com quem compôs "Maracatu Atômico"

Mautner nasceu no Rio de Janeiro filho de europeus, o pai um judeu austríaco que fugia do holocausto (daí o título do filme). Desde criança sua vida já parecia incorporar o estranhamento e multiculturalismo que percorre toda sua obra. “Dos meus dois aos setes anos de idade minha babá me levava ao candomblé. Ela trocava de roupa e surgia como uma rainha, passava a mão na minha cabeça e dizia ‘Seus pais vieram de um lugar ruim, mas aqui você vai achar seus amigos’”, conta ele.

Aos sete anos a mãe de Mautner se casou novamente, e a família se mudou para São Paulo. Até os 14 anos de idade aprendeu a tocar diversos instrumentos em casa. “Meu padrasto fazia bicos em rádios de São Paulo, e eu sempre o acompanhava. Já tinha uma relação com a música brasileira desde então”.

Em 1957 Mautner já prenunciava uma vida tumultuada ao ser expulso do tradicional colégio Dante Alighieri após escrever um texto considerado obsceno. Seu primeiro livro, “O Deus da Chuva e da Morte”, reunia material escrito entre 1956 e 1958, mas só seria lançado, com grande aclamação, em 1962, com grande aclamação, ganhando o prêmio Jabuti no ano seguinte. Ele também já dava seus primeiros passos como compositor: “Em 58, 59, já compunha algumas músicas, como ‘O Vampiro’. Minhas referências musicais eram samba, maracatu, frevo e alguma coisa de rock, como Little Richards”.

Apesar do filme mostrar Mautner como alguém que não se encaixava na esquerda tradional, sua ligação com o comunismo foi muito forte. "Fiquei conhecido em 62 com a publicação do livro e fui convidado pelo Mario Schemberg (importante físico e crítico de arte brasileiro) para integrar o Partido Comunista Brasileiro, fui para o Comitê Central. Mas não sou militante há muitas décadas”, conta.

Tropicalista

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    Caetano Veloso, Gilberto Gil e Jorge Mautner em cena do filme "Jorge Mautner - O Filho do Holocausto"

Após passar alguns anos morando em Nova York, Mautner foi para Londres, onde conheceu Caetano Veloso e Gilberto Gil durante o período de exílio dos tropicalistas. Com eles, chegou a rodar um filme, chamado “O Demiurgo”. “O filme é um resultado direto desse encontro. Ele foi gravado em 16 milímetros, feito com som direto. Trata-se de um documento histórico”, conta Mautner.

Sobre o tropicalismo, Mautner afirma “Eu sou um hiper-tropicalista, como disse o Caetano”.  Mautner enxerga o movimento como algo que vai muito além de uma expressão cultural e possui uma ligação profunda com a história do país. “O tropicalismo era uma continuidade de ideais que já existiam antes. Na minha obra eu já dizia que no Brasil aconteceria a nova era”.

Comentando as influências culturais estrangeiras que caracterizaram o movimento, ele diz; “Pelas condições do país, nós somos uma amálgama. O mistério sempre veio do forasteiro, do estrangeiro. Basta você ver, até hoje todo grupo estrangeiro que vem tocar é idolatrado”.

Mautner encara essas características próprias do país como um elemento anti-fascista por excelência. “Aquele norueguês que cometeu o massacre anos atrás, nos seus escritos ele citava o Brasil como um lugar de influência negativa. Ou o mundo se ‘brasilifica’ ou se tornará nazista”, afirma.

Para Mautner, a cena do Recife surgida nos anos 90 tem conexões claras com o tropicalismo. “Eu acho que o Chico Science fazia com o mangue beat veio de uma continuidade longa que resultou em algo próprio, porque ele também tinha a sua personalidade. Foi um processo”, comenta.

Mautner diz que continua fazendo shows, “sem o Nelson, que é insubstituível", e deve inaugurar um novo site nas próximas semanas. Além disso apresenta o programa “Oncotô”, na TV Brasil, “onde eu viajo estado por estado reinterpretando o Brasil segundo José Bonifácio”, e foi recentemente nomeado consultor cultural do Ministério do Esporte. “Quero reunir coisas esquecidas da história do Brasil”, conta, ele mesmo personagem marcante e quase esquecido da história recente do país.