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David Cronenberg completa 70 anos com fama de cineasta do bizarro

O cineasta canadense David Cronenberg (dir.) ao lado do ator inglês Robert Pattinson após a exibição de "Cosmópolis" no Festival de Cannes 2012 - Valery Hache/AFP Photo
O cineasta canadense David Cronenberg (dir.) ao lado do ator inglês Robert Pattinson após a exibição de "Cosmópolis" no Festival de Cannes 2012 Imagem: Valery Hache/AFP Photo

Inácio Araújo

Colunista do UOL

15/03/2013 04h55

Em seus 70 anos de vida e mais de 40 de carreira, o nome de David Cronenberg ficou associado a monstros e bizarrices. Nada mais exato. E ao mesmo tempo nada mais equivocado.

Os monstros e as bizarrices existem mesmo, mas o cinema do canadense não se limita a produzi-los. O que torna seus monstros tão particulares é o fato de que não vêm de outro planeta, nem são inoculados por extraterrestres: eles surgem em nós mesmos, como resultado da ciência moderna, e atingem em cheio nosso corpo e nossa mente.

Assim é o caso dos zumbis de “Calafrios”. Tudo começa com as pesquisas de um cientista obstinado com a ideia de transformar o mundo numa festa erótica permanente, o que o leva a inocular um parasita sexual na garota que está paquerando. Mal sabe que esse parasita mortal vai se difundir loucamente.

Nessa época, 1975, Cronenberg estava começando a carreira (era seu primeiro filme), ninguém falava de Aids, pelo simples fato de que isso não existia. Mas o filme como que previa essa terrível epidemia. Talvez porque alguns artistas sejam, afinal, um pouco profetas.

Foi alguns anos mais tarde, com “Scanners - Sua Mente Pode Destruir” (1983), que Cronenberg começou a realmente chocar o mundo do cinema. O que podiam ser aquelas mentes poderosas, poderosíssimas, capazes de destruir cérebros, de controlar os humanos normais?

Talvez não possamos explicá-las. Talvez essas mentes incontroláveis equivalessem aos computadores de hoje, esses supercérebros que o homem inventou para um dia superá-lo e, quem sabe, dominá-lo.

Os personagens de Cronenberg são mutantes. Há os homens-inseto, como o de “A Mosca” (1986), que lentamente se transforma num animal. Os homens-game de “eXistenZ” (1999), que introjetam os jogos de computador com tal intensidade que eles se tornam seu próprio corpo, de tal modo que já não sabem o que é game e o que é vida real.

De filme em filme, Cronenberg foi consolidando o que podia parecer apenas bizarrice, mas se tratava da visão não raro terrificante do homem contemporâneo em sua convivência com a tecnologia moderníssima e as transformações que provocam na civilização e no próprio corpo. Que pensar de um ser capaz de viver com partes que pertenciam a outras pessoas (“Enraivecida - Na Fúria do Sexo”, 1977), como no caso dos transplantes, ou capaz de criar um outro ser igual a si mesmo, como no caso das clonagens (“Gêmeos - Mórbida Semelhança”, 1988)?

É a esse tipo de horror, no qual vivemos mergulhados sem nem mesmo perceber, esse mundo de mutações silenciosas e radicais, que nos introduz David Cronenberg: como se seus monstros quisessem chamar nossa atenção para as monstruosidades que produzimos, que a ciência contemporânea produz.

Quando chega o século 21, século que começa mais conservador, esse canadense, típico filho de Maio de 68, se retrai para sobreviver. Mas não entrega os pontos, isso nunca.

Em “Marcas da Violência” (2005), por exemplo, o herói transforma-se a ponto de esquecer a identidade original (ele, que era um gângster, transforma-se num pacato comerciante numa cidadezinha de Indiana). Não sabemos como se deu essa mudança, e Cronenberg, no caso, cria aqui uma metamorfose interiorizada, que não incide sobre o corpo, apenas sobre a mente.

Mas já não será uma audácia postular a existência de um mundo mental, do psiquismo, nesse momento em que a psiquiatria tenta com todas as forças (e cada vez fracassa...) provar que somos comandados por processos cerebrais (isto é, neurológicos), mas nunca mentais? E, claro, não esqueçamos do subtítulo de “Scanners”. Sua mente pode destruir.

E em “Um Método Perigoso” há mentes que destroem e outras que reconstroem o homem. Porque a psicanálise não salva o homem de si mesmo --nenhuma dúvida quanto a isso-- porém abala nossa inocente certeza de que somos os senhores do mundo. Não, nos diz Cronenberg (com Freud, no caso): não somos senhores nem de nós mesmos. Nossos gestos nos carregam ao imprevisível, e não poderia ser diferente: a vida, o mundo, são inconstantes, incontroláveis.

Que o digam os magnatas das finanças, esses gênios instantâneos da multiplicação dos bilhões, como o Eric Parker, de “Cosmópolis” (2012), que uma única falha, um único lance errado, joga na falência (isto é, no nada, pois ele não é feito senão de dinheiro).

David Cronenberg sabe que o mundo se apresenta, neste século 21, mais conservador, mais careta do que nos seus dias de juventude, nos dias de seus primeiros filmes. Mas está esperto: sabe que os monstros, mutantes e outros bichos de seu mundo de terror estão muito vivos, ao nosso lado ou dentro de nós. E que bizarros mesmo talvez não sejam os seus filmes. Talvez sejam os homens.