Documentário sobre Bardot esconde imagem incomum sob falação cafona
Brigitte Bardot não foi apenas um rosto bonito (muito bonito) e uma garota sensual (muito sensual). Numa França que saía machucada da guerra, nos anos 1950, foi um sopro de modernidade.
Sua presença, sua atitude, anunciavam um renascimento que estava para acontecer. Foi isso que chamou tanto a atenção em “...E Deus Criou a Mulher”: essa aura de liberdade da mulher europeia, francesa em especial, ganhava com Bardot uma leveza e vivacidade que as antigas divas desconheciam.
O mito nasceu depressa. Virou BB. Única. Porque Marilyn Monroe, em Hollywood, tinha de se fazer de “loira burra”, e Sophia Loren, na Itália, de mãe napolitana. BB podia se entregar à feminilidade.
É um pouco esse caráter único que ainda hoje chama a atenção. Ou antes, o mistério que cerca essa garota especial, hoje chegando aos 80 anos (a completar em setembro), distante dos homens (isto é, da espécie humana) e amiga incondicional dos animais --além de eleitora da extrema-direita, mas isso é outra história.
"Bardot, a Incompreendida", o documentário de David Teboul exibido no festival É Tudo Verdade, não chega a buscar ou mesmo criar um “mistério Bardot”. É quase um filme oficial, em que um locutor (a voz do autor) se dirige a Brigitte em tom elegíaco, lamentoso, como se a vida da atriz tivesse sido uma desgraça completa.
Ora, o próprio documentário mostra que não foi bem assim, ou que, em todo caso, essa é uma maneira de ver as coisas. OK, BB hoje é uma reclusa. Abriu seus arquivos ao documentarista, mas não lhe deu entrevista (sua palavra, tirada de suas memórias, no entanto, comparecem, lidas por Bulle Ogier).
Ao contrário da maior parte das atrizes, sobretudo as que se tornaram famosas pela beleza e sensualidade, BB foi uma criança da burguesia francesa. Seus pais eram bem de vida, o que tornou sua infância fartamente documentada --ponto para o filme. Como quase todas as crianças, algum problema familiar ela tinha: o sentimento de solidão, de insegurança etc. Essas coisas que, no seu caso, eram compensadas pela dança: era dançando que se sentia nas nuvens, que se sentia ela mesma.
Foi dançando que começou a conquistar as plateias, em filmes quase sempre fracotes, em que se destacava seja dançando, seja falando, seja andando: tudo nela parecia destinado a ser absurdamente sensual.
Daí a uma juventude marcada por paixões foi um pulo. Primeiro, Roger Vadim, aquele que a fez sentir-se mulher inteiramente pela primeira vez, diz ela. Depois Trintignant, Jacques Charrier, Samy Frey...
Até chegar ao malogrado casamento com Gunter Sachs. Pois o que Sachs queria dela, aparentemente, era a publicidade. O fato é que ela até largou por conta dele o marroquino que vivia no Brasil Bob Zaguri, que a trouxe ao Rio, numa viagem que mobilizou a nação no começo dos anos 1960.
Depois de um romance com Serge Gainsbourg, ela parece pronta a deixar o convívio com os humanos (ou ao menos a limitá-lo ao mínimo), e a abandonar o cinema, o que fez em 1973.
BB não foi mais infeliz do que a média das pessoas, nem merecia de David Teboul esse tratamento em tom melancólico (para não dizer moribundo) que recebeu. Foi uma mulher que buscou a vida. Foi uma atriz capaz de fixar sua imagem para sempre, seja em filmes ruins, seja no magistral “O Desprezo”, de Jean-Luc Godard (1963), de longe seu grande momento no cinema (mas os trabalhos com Louis Malle também não são desprezíveis).
Seguindo sua vida de forma cronológica, o filme passa batido por Bardot e seus mistérios. Tudo bem, trata-se de um filme oficial. Mas seria desejável ao menos buscar uma explicação para o fato de ter deixado seu único filho com o pai, na maior, assim que se separou de Charrier.
Sim, BB é uma bela personagem, cheia de contradições, que o filme trata de aplainar. Não desejava a maternidade, mas teve um filho. É um produto da mídia e soube tratar com ela (é boa a cena em que segura o filho, ainda recém-nascido). Acabou engolida por alguém que afinal estava mais a fim do que ela representava do que dela própria (Sachs).
Mas o que BB teve de incomum não foi sua vida. Foi mesmo sua imagem, única, vibrante, juvenil, pronta para a vida: é daí que vinha o que de incomum, de único, havia nela. É isso que "Bardot, a Incompreendida" deixa passar batido sob uma falação bem cafona --BB merecia mais.
A Brigitte de 1950, 1960, era o signo mais adorável de uma França que renascia dos traumas da guerra. A "Bardot - A Incompreendida" de 2014 é a evidência de um país cujos melhores anos parecem ter ficado para trás.
Serviço:
É Tudo Verdade: "Bardot, a Incompreendida" em São Paulo
Quando: dom. (6), às 18h, no Reserva Cultural; seg. (7), às 13h, ter. (8), às 19h, no Cine Livraria Cultura
É Tudo Verdade: "Bardot, a Incompreendida" No Rio
Quando: qua. (9), às 19h, e qui. (10), às 13h, no Espaço Itaú Botafogo
Quanto: grátis
Duração: 115 minutos
Classificação: não recomendao para menores de 16 anos
* Inácio Araújo é crítico de cinema no jornal Folha de S.Paulo
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