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"Getúlio" mostra que democracia atual lembra a de antes de 64, diz diretor

Carlos Minuano

Do UOL, em São Paulo

30/04/2014 06h00

Em ano eleitoral, o suspense político "Getúlio", que estreia nesta quinta (1º), expõe um Brasil que se repete. A poucos meses de mais uma eleição direta para a presidência (sétimo pleito após a abertura política), com Tony Ramos e Alexandre Borges, que narra os últimos dias do presidente Getúlio Vargas (1882-1954), é uma amostra de que processos no governo e no jogo da política seguem parecidos. E, mais do que isso, revela que a atual democracia lembra a anterior ao golpe de 1964. “Conta uma história que está sempre aí”, concorda o diretor do filme, João Jardim.

“O que ocorreu há 60 anos acontece hoje em dia e pode continuar acontecendo se não compreendermos como se dá esse processo de governar no Brasil”, diz. Uma mensagem clara que, para o diretor, atesta a contemporaneidade do filme. “Temos uma legislação que permite que as coisas continuem se repetindo, a participação popular ainda se restringe a votar a cada quatro anos”.

Apesar do título, “Getúlio” não é uma cinebiografia de um dos nomes mais importantes da política brasileira (que dirigiu o país em dois momentos, num deles por 15 anos consecutivos). O filme é a dramatização, com requintes de suspense, de um dos nossos períodos históricos mais intensos.

Primeira ficção de João Jardim, o longa se fixa nos 19 dias de agosto de 1954, cheios de escândalos, conspirações e traições, que se passam entre o atentado ao jornalista de oposição Carlos Lacerda e o suicídio do ex-presidente.

No papel de Getúlio Vargas, o ator Tony Ramos, diz que a história faz um convite à reflexão e pode ajudar a entender o que é política. “Mostra os silêncios que habitaram o homem, e não apenas o presidente, durante esse período”. A modernidade da obra, segundo ele, está em analogias que o filme permite com qualquer época. “Mostra as intrigas e os bastidores do poder”.

O roteiro, escrito por George Moura (da série "Amores Roubados") foi elogiado por Tony, por permitir descobertas sobre outros aspectos de Getúlio, como a de que era em sua intimidade um homem simples, cotidiano. Entretanto, o ator afirma que o filme não mudou algumas impressões que tinha sobre o controverso político. “A consciência do ditador que ele foi, das alianças ruins, tudo isso não mudou em mim”.

Carimbado por simpatizantes como o "pai dos pobres", Getúlio Vargas se popularizou por regulamentar as leis trabalhistas, mas sua história no poder foi marcada também pelo viés ditatorial, pela censura e por denúncias de corrupção.

Para Drica Moraes, que vive Alzira, a filha de Getúlio, o ambiente de ano eleitoral pode contribuir para que o filme estimule os jovens a refletirem sobre a história política brasileira. “Para quem viveu em uma ditadura, é fácil tomar uma posição, o mundo naquela época era bipartidário. Hoje em dia, apesar da pulsão de juventude que vai às ruas, poucos se interessam pelo assunto”.

Ficção com viés documental
Com experiência em documentários, o diretor João Jardim reuniu um extenso material de pesquisa, entre eles filmes e livros raros, documentos e biografias de políticos contemporâneos, além de anotações de Alzira Vargas, filha de Getúlio. “Isso permitiu um mergulho profundo na figura contraditória do dirigente politico, nacionalista e ditador”, elogia Tony Ramos.

A ideia do filme surgiu, de acordo com o diretor, logo após filmar o documentário “Pro Dia Nascer Feliz”, sobre educação e escolas no Brasil. “O que me encantou não foi falar de Getúlio, mas contar uma história que ecoa ainda hoje de maneira muito forte, que tem relação com a formação de nosso país, com o nosso momento atual”.

Trailer do filme "Getúlio"

Embora recheado com clima de tensão, boas pitadas de suspense e drama, entre outros ingredientes de ficção, o filme tem um corte assumidamente biográfico. A "mão de documentarista" de João Jardim é perceptível . O filme traz imagens documentais e uma reconstituição histórica cuidadosa. “Muitos dos textos são reais, tirados de diversos tipos de registro da época”, diz o diretor. 

Jardim conta que a base foi, principalmente, os diários escritos por Getúlio desde a revolução de 1930 (da qual ele foi um dos mentores) até 1942. “Permitem entender quem ele é”.

Outra ferramenta importante foram os jornais da época. “Espelham melhor aquele cotidiano, é muito mais rico para o roteiro, porque é a noticia quente, apurada pelo repórter, que dá a verdade do que aconteceu naquele dia, que depois poderia se descobrir não ser verdade, porque ninguém sabia o que viria no dia seguinte, o que se escreveu após os fatos é análise”, diz.

Vilão
Feliz pela oportunidade de viver nas telas do jornalista Carlos Lacerda (quem, segundo ele, já havia cogitado representar), Alexandre Borges destacou a importância e a riqueza de seu personagem. Para ele, Lacerda foi injustamente colocado à direita ou ao "centrão" da história política.

“Quis quebrar essa figura de vilão. Ele era um jovem que pensava um Brasil de outra maneira, que combatia a corrupção, e essa figura de Getúlio como ‘pai dos pobres”, afirma.

Em tempos de guerra fria e polarização ideológica, o atentado a Carlos Lacerda desencadeou uma pressão que tornou quase iminente a renúncia do presidente. “Isso fez com que Lacerda fosse cada vez mais ouvido, mas, depois do suicídio de Getúlio, ele foi perseguido, teve que sair do país, terminou isolado e até hoje permanece como uma figura obscura”, conclui Borges.

Caracterização
Construir o Getúlio não foi tarefa fácil, revela o diretor João Jardim. “Era fundamental que as pessoas não vissem o Tony Ramos na tela”.

Segundo ele, a barriga do ex-presidente, que naquele período estava acima de seu peso médio, foi um dos detalhes que deram mais trabalho. “Getúlio naquela fase de sua vida tinha engordado 30 quilos”. O diretor admite que o desafio de montar o personagem ganhou ares de obsessão. “Contratamos uma pessoa de fora, usamos uma roupa cheia de enchimentos, que começa abaixo do joelho e vai até o ombro”.
 
A reconstrução de cenários foi outro detalhe importante da produção de “Getúlio”. Parte das filmagens foi no ambiente onde realmente aconteceu a história: o Palácio do Catete, que hoje é um museu, onde a equipe do filme passou 51 dias. Era lá a antiga sede da Presidência da República, no Rio, capital do país na época – palco de reuniões ministeriais, mas também residência do presidente. “Toda a mobília do quarto, o pijama manchado de sangue e até a arma usada no suicídio são as peças originais”, revela o diretor.

A música foi um personagem à parte. “Ela acrescenta uma história ao filme, mas não podia exacerbar a empatia do público pelo Getúlio, senão ele ficaria um cara bonzinho, as pessoas ficariam facilmente com pena dele.”

E a opção pela música sinfônica só aumentou o trabalho, acrescenta. “A composição da trilha chegou a atrasar a produção do filme”. Segundo o diretor, poucas pessoas no Brasil trabalham com música sinfônica para cinema, por isso a produção também teve que buscar músicos fora do país.