Filme retrata assassinato que envolveu ícones do movimento beatnik
Quem passar em frente a uma sala de cinema e se deparar com o título “Versos de um Crime”, filme que estreou nesta quinta-feira (12), pode se enganar e pensar que se trata de um thriller policial. Na verdade, é um drama que retrata a gênese da geração beatnik, movimento literário e de contracultura regado a jazz, álcool, drogas e total falta de regras, surgido nos EUA do início da década de 1940 e que teve como fundadores e principais expoentes o poeta Allen Ginsberg e os romancistas William Burroughs e Jack Kerouac.
Além de trazer esses três ícones beats interpretados por Jack Huston (Kerouac), Bem Foster (Burroughs) e o ex-Harry Potter Daniel Radcliffe (Ginsberg), a película conta a história de como eles se conheceram, por meio do jovem estudante Lucien Carr (vivido por Dane DeHaan). Também mostra uma versão do tal crime do título brasileiro: o assassinato do professor David Kammerer (Michael C. Hall), cometido em 1944 por Carr, que envolveu os criadores da geração beat e quase acabou com ela antes mesmo que suas obras literárias fossem publicadas.
No longa, tudo é narrado do ponto de vista de Ginsberg, então um jovem estudante da Universidade de Colúmbia, em Nova York. Filho do poeta Louis Ginsberg (vivido por David Cross) e de Naomi Ginsberg (Jennifer Jason Leigh), o Ginsberg de Radcliffe é um garoto tímido, atormentado pela culpa de ter deixado a mãe esquizofrênica para ir estudar em Nova York. Também é um garoto que está descobrindo a sua sexualidade e acaba se apaixonando pela figura anárquica de Carr, o colega de universidade que lhe apresenta Kerouac, Burroughs e as noitadas regadas a bebedeira e drogas.
De autoria do diretor estreante John Krokidas e do escritor Austin Bunn, o roteiro não foi extraído de nenhum livro. Apesar de girar em torno de pessoas que subverteram as regras da literatura e da poesia e até hoje são consideradas “escritores malditos”, o filme é bem convencional ao retratar uma história de paixão e decepção amorosa de Ginsberg em relação a Carr e, assim como “Na Estrada” (2012), de Walter Salles, está longe de ser um longa que agrade aos fãs da revolucionária literatura beat.
O assassinato no parque Riverside
Em “Versos de um Crime”, Lucien Carr acaba sendo mostrado como um quase vilão. Um jovem manipulador, sedutor, cercado por amigos talentosos e que se aproveita do talento deles. Um desses amigos é o professor de inglês Kammerer, um homem mais velho que conheceu Carr ainda adolescente _por meio de seu amigo Burroughs_ e que ficou obcecado por ele, a ponto de segui-lo por todo lugar e de sentir um ciúme doentio de todos que se aproximassem dele.
Fora do filme, o fato é que Carr conheceu o professor Kammerer aos 14 anos, ao fazer parte de um grupo de estudantes em Saint Louis. Impressionado com a inteligência do garoto, Kammerer o apresentou a um amigo de infância: Burroughs.
A partir daí, Carr realmente se tornou uma obsessão para Kammerer, que não parava de segui-lo por onde quer que fosse. Durante cinco anos, o jovem mudou algumas vezes de escola e de cidade, mas o professor sempre surgia no lugar pouco tempo depois. Inclusive, muitos atribuem a ele a culpa por Carr ter tentado se matar, enfiando a cabeça em um forno com gás ligado, na época em que estudava na Universidade de Chicago.
Em 13 de agosto de 1944, Carr e Kerouac tentaram embarcar para Paris em um navio da Marinha Mercante. A ideia era viverem uma aventura na capital francesa, na qual Carr fingiria ser surdo-mudo e Kerouac se passaria por francês, já que, dos dois, só ele sabia o idioma. Como o plano não deu certo, ambos foram ao bar West End, que era frequentado pelos beats, para encher a cara.
Kammerer acabou aparecendo no bar à procura de Carr, e os dois saíram para dar uma volta. Quando passavam pelo parque Riverside, segundo a versão apresentada na época por Carr, Kammerer tentou atacá-lo sexualmente, e o rapaz se defendeu dando-lhe vários golpes com um canivete de escoteiro. Em seguida, amarrou as mãos da vítima com seu próprio cinto, encheu seus bolsos de pedras e a atirou no rio Hudson.
Após o crime, Carr procurou Kerouac, que o teria ajudado a enterrar pertences da vítima, entre eles seus óculos. Depois foi até Burroughs, mostrando-lhe o maço de cigarros de Kammerer, todo ensanguentado. A reação dr Burroughs, segundo foi apurado na época, foi jogar o maço no vaso sanitário e dar descarga, aconselhando em seguida o amigo a consultar um advogado.
Carr se entregou às autoridades pouco depois o crime. Julgado e condenado a 20 anos de prisão, acabou passando apenas dois em um instituto correcional. Em parte isso se deve à cobertura da imprensa, que "comprou" a história do rapaz como um "crime pela honra", cometido por um jovem que estava apenas se defendendo de um homem mais velho, homossexual.
Burroughs e Kerouac também foram detidos, como testemunhas materiais do crime. O primeiro teve a fiança paga por seu pai, já Kerouack concordou em se casar com a namorada Edie Parker (interpretada no filme por Elizabeth Olsen), para que o pai dela pagasse sua fiança. O casamento foi anulado em 1948.
Obras-primas beatniks
Após o assassinato no parque Riverside, o “Círculo Libertino”, como Ginsberg chamava o grupo beatnik na época, se separou por um tempo, mas eles nunca deixaram de ser amigos até o fim de suas vidas. A imagem de mau caráter de Carr apresentada em “Versos de um Crime” também parece não proceder, já que, depois da prisão, ele continuou amigo de todos.
Depois do assassinato, Burroughs resolveu ser tornar um criminoso, traficando drogas e batendo carteiras. As experiências que viveu nesse período o inspiraram a escrever os seus livros mais conhecidos “Junky”, publicado em 1953, e “Almoço Nu”, em 1957. Em 1951, ele matou a mulher, Joan Wollmer, com um tiro de espingarda na cabeça em uma suposta “brincadeira de Guilherme Tell”. O caso acabou considerado homicídio culposo (sem intenção de matar), e Burroughs livrou-se de uma condenação. Ele morreu em 1997, aos 83 anos.
Kerouac, após anular seu casamento com Edie Parker em 1948, iniciou a viagem pelos Estados Unidos ao lado de Neil Cassady, outro ícone beat, que daria origem a seu romance “On the Road”, publicado em 195. O livro ganhou edições no Brasil com os títulos “Pé na Estrada” e “Na Estrada”. Kerouac chegou a escrever várias outras obras, entre eles “The Town and the City”, inspirado no assassinato de David Kammerer, mas nenhuma delas teve o mesmo sucesso de “On the Road”, que inspirou diversos jovens a viajar de carona pelos Estados Unidos. Ele morreu em 1969, aos 47 anos, em consequência de úlcera e problemas no fígado, resultantes de anos de bebedeira pesada.
Ginsberg, por sua vez, tornou-se famoso com seu poema “Uivo”, com críticas ao estilo de vida norte-americano, publicado em 1956. Após uma vida dedicada à poesia, ao ativismo e ao budismo, ele morreu aos 70 anos em 1997, vítima de câncer no fígado. Após o assassinato de Kammerer, em 1944, Ginsberg chegou a começar um livro sobre o episódio, chamado “The Bloodsong” (“a canção sangrenta”, em livre tradução), mas não chegou a publicar o livro a pedido de um professor da universidade de Colúmbia, pois a obra poderia manchar a reputação da instituição. Ele dedicou a primeira edição de "Uivo" a Lucien Carr, mas removeu o nome do colega das dedicatórias nas edições seguintes, a pedido do próprio Carr.
Outro livro sobre o crime é “E os Hipopótamos Foram Cozidos em Seus Tanques”, escrito em parceria por Kerouac e Burroughs, logo após o assassinato de Kammerer. O livro, porém, só foi publicado em 2008, pois os autores haviam prometido a Carr soltá-lo só depois que ele morresse, o que ocorreu em 2005.
Apesar de Carr ter sido um personagem fundamental no nascimento do movimento beatnik, ele nunca publicou um livro. Após sair da prisão em 1946, começou a trabalhar na agência de notícias United Press International, tornando-se jornalista. Continuou amigo de seus colegas beats, inclusive ajudando Kerouac a escrever e publicar “On the Road”. Após 47 anos como funcionário da United Press, ele se aposentou em 1993. Casou-se duas vezes e teve três filhos. Morreu em 2005, aos 79 anos, em decorrência de câncer nos ossos.
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