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Vida catastrófica de Brando fez dele um dos atores mais marcantes do cinema

Inácio Araújo

Especial para o UOL*

01/07/2014 06h00Atualizada em 02/07/2014 16h29

Marlon Brando nasceu para brilhar e sabia disso. Era o aluno mais brilhante da classe no Actor’s Studio, mas também indisciplinado e, segundo colegas, preguiçoso. Isso não o impediu de revelar já em seu segundo filme, "Uma Rua Chamada Pecado" (1951), não apenas o carisma e a beleza máscula, como também o imenso talento.

A história chegara ao cinema pelas mãos de seu mestre no Actor's e no teatro, Elia Kazan, e o filme era uma adaptação da peça de Tennessee Williams que Brando interpretara durante dois anos, entre 1947 e 1949, na Broadway, sempre sob a direção de Kazan.

"Uma Rua Chamada Pecado" representou sua primeira indicação ao Oscar de melhor ator, que perdeu para  Humphrey Bogart em Uma Aventura na África". Com Kazan rodaria ainda "Viva Zapata!" (1952), e dois anos depois, em 1953, "Sindicato de Ladrões", que rendeu seu primeiro Oscar de melhor ator.

Marlon Brando não precisava fazer grande esforço para ser grande. Foi um magnífico Marco Antonio em "Júlio César" (1953), de Joseph L. Mankiewicz (adaptado de Shakespeare) e, com a mesma desenvoltura, o motoqueiro de "O Selvagem" (1953), que podia não ser um grande filme, mas marcava, junto com James Dean, a figura do jovem rebelde.

Tédio
O sucesso parecia entediar Marlon Brando. Suas interpretações tornaram-se, com o tempo, mecânicas. Impunha-se o carisma. Havia exceções, como no belo "Casa de Chá do Luar de Agosto" (1956), de Daniel Mann, ainda assim.

Outra bela exceção foi o faroeste "A Face Oculta" (1961), dirigido por ele mesmo: uma realização caprichada, mas também caprichosa, demorada, dessas de deixar o produtor enlouquecido. O legado ainda hoje parece formidável --para ele e para Karl Malden, seu parceiro de Actor's Studio.

Um lugar no mundo
Na virada dos anos de 1960 e 1970, com o mundo se esquerdizando, Brando parece ter encontrado a si mesmo, o que concretizou numa série de belos papéis. Em "Queimada" (1969), de Gillo Pontecorvo, depois em "O Poderoso Chefão" (1972) e "Apocalypse Now" (1979), com Francis Ford Coppola, e em "O Último Tango em Paris" (1972), de Bernardo Bertolucci.

Foi como se os novos tempos representassem um novo desafio para Brando, como se precisasse voltar ao investimento dos primeiros tempos. Mas Brando já era um outro. Contemplado com um segundo Oscar, por "O Poderoso Chefão", mandou para recebê-lo uma índia, em sinal de protesto contra o genocídio praticado pelos brancos e o tratamento atual aos nativos da América do Norte.

Tragédias
A partir dos anos 1980, a carreira de Brando se caracterizou sobretudo por participações especiais em que recebia grandes cachês por pouco tempo de filmagem. Vendia seu nome, em suma. Sabia de seu "valor de troca" e parecia se incomodar cada vez menos com seu "valor de uso".

Nos últimos anos de vida, aliás, vários dos papéis que aceitou foram para pagar os advogados para seus filhos. Brando disse certa vez que fora um péssimo pai, e os fatos o confirmavam. Um de seus filhos passou anos preso, por assassinato do cunhado. A filha se suicidou.

Tudo que de sombrio já anunciava o personagem do "polaco" Kowalski em "Uma Rua Chamada Pecado" (ou "Um Bonde Chamado Desejo", no teatro e na vida) parecia ressurgir no corpo desse homem agora envelhecido, entristecido e, sobretudo, imensamente obeso: como se o ódio a si mesmo devesse se manifestar em sua figura.

Brando morreu em 1º de julho de 2004, há exatos dez anos. Ninguém mais tinha dúvida de que sua vida catastrófica se refletira em uma das presenças de ator mais criativas e marcantes de todos os tempos.

Trailer legendado de "O Último Tango em Paris"

*Inácio Araújo é crítico de cinema do jornal Folha de S.Paulo