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50 anos de Deus e o Diabo: Glauber Rocha adorava polêmica, diz Othon Bastos

Mariane Zendron

Do UOL, no Rio

09/07/2014 07h00

As filmagens de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", um marco do cinema nacional dirigido por Glauber Rocha, foram cercadas por lendas e devaneios. No aniversário de 50 anos de lançamento do longa, a ser comemorado nesta quinta-feira (10), as histórias fantásticas ainda são lembradas por Othon Bastos, ator que deu vida a Corisco, braço direito de Lampião no filme.

"Você não sabe o que aconteceu na cena em que Corisco aceita Manuel [Geraldo Del Rey] no bando e o batiza como Satanás", provoca o ator de 81 anos, em entrevista ao UOL. "A filmagem era em um descampado e ventava muito. Corisco chama Manuel e diz: 'Manuel é nome de vaqueiro. A partir de agora, você se chamará Satanás'. E pá, coloco o chapéu na cabeça dele. Nesse momento, o vento bate e toca as cordas do violão", relembra, batendo com as duas mãos na mesa.

"O vento faz 'blim, blem, blim, blem, blim, blem', bem devagar, como uma melodia. Não sei se Glauber era religioso, mas ele quis saber: 'Meu Deus, o que é isso?'". Othon repete o som sinistro do violão mais duas vezes.

O encontro "olho no olho" com Othon Bastos foi exigência do próprio ator. "Só falo [sobre o filme] se for pessoalmente. Esse filme é importante demais e eu preciso olhar no seu olho para contar como foi", disse ele, dias antes por telefone, à reportagem. Pedido atendido, a entrevista aconteceu em dia de jogo do Brasil contra a Colômbia pela Copa do Mundo no Parque Lage do Rio de Janeiro, local que já foi cenário de outro filme de Glauber, "Terra em Transe" (1967).

"Deus e o Diabo na Terra do Sol", segundo filme de Glauber Rocha -- que morreu em 1981, aos 42 anos, vítima de problemas pulmonares --, inovou na linguagem cinematográfica ao colocar em prática o bordão "uma câmera na mão e uma ideia na cabeça". Foi este longa, uma saga sobre o sertão nordestino, que alçou o diretor à categoria de um dos principais nomes do Cinema Novo.

Othon, que vive atualmente no Rio de Janeiro, destaca a relevância do filme de Glauber nos dias de hoje. "Parece que foi feito ontem. São temas atuais, como o homem comprado pelos coronéis para acabar com o povo. Tem ainda a vingança do humilde, do mais fraco", ele ressalta.

Pôster do filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol" Imagem: Reprodução

Lançado em meio à ditadura militar, o filme precisou sair escondido do Brasil. Foi indicado a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1964 e seu emblemático cartaz, criado por Rogério Duarte, saiu na capa da revista francesa de cinema "Positif".

No Brasil, o sucesso foi ainda mais estrondoso. "Quando o filme foi lançado, o Glauber me ligou: 'Othon, o filme é um deslumbre, as pessoas estão enlouquecidas'. Depois disso, perdi as contas de quantos convites recebi para fazer cangaceiro, assassino, ladrão, estuprador. Respondia sempre a mesma coisa: 'Já fiz um cangaceiro para não fazer mais nenhum'".

Grandes amigos

Durante a entrevista, Othon repete cenas do filme e gargalha com histórias inacreditáveis. Em uma delas, lembra quando voltava exausto das filmagens, ainda vestido com o figurino de Corisco, e algumas mulheres do povoado o viram e acreditaram se tratar de um cangaceiro de verdade. "Elas correram e se esconderam atrás da janela da casa."

O ator se emociona quando fala do conterrâneo Glauber Rocha. "Um grande amigo", diz, antes de recordar os desentendimentos ocorridos na primeira vez em que se viram. Na década de 1960, Glauber, então com 20 anos, se aventurava pela carreira jornalística. Naquela época, Othon já morava no Rio de Janeiro, mas recebeu um convite para voltar à Bahia, sua terra natal, para ministrar aulas de teatro na universidade pública. Desinformado, Glauber escreveu em um suplemento literário da Bahia que era um absurdo a instituição contratar um professor carioca para ganhar o mesmo salário que um catedrático baiano, que levara anos para se formar.

"Fiquei louco quando li aquilo. Sabia que ele encontrava os amigos em uma livraria de Salvador e fui até lá para tirar satisfações. Disse: 'Escuta aqui, Glauber. Você é um canalha quando diz que sou carioca, quando sou mais baiano que você. Nasci em Tucano, no alto sertão'", Othon relembra o diálogo. Depois disso, tornaram-se grandes amigos. "Ele ficou pasmo, me olhando, quando eu disse aquilo. Acho que ali ele começou a me respeitar".

Othon lembra ainda que Glauber era dono de um temperamento difícil. "Ele gostava de ser o centro das atenções sempre. Adorava uma polêmica, mas era só deixar ele falar. Ele ficava todo pavão. Às vezes exagerava, falava mais alto, mas em seguida se desculpava com um abraço".
 


Diabo loiro

Cerca de dois anos depois daquele primeiro encontro, muita coisa mudou. Glauber já era cineasta, tinha um longa no currículo ("Barravento", lançado em 1962) e a rusga já havia se transformado em história engraçada sobre a amizade dos dois.

O diretor se preparava para filmar "Deus e o Diabo na Terra do Sol", que acompanha a história de Rosa e Manuel, um casal que foge da seca, da exploração e da injustiça para se encontrar com a devoção de um povo miserável e com o poder dos cangaceiros.

Glauber deixava claro que, apesar de gostar do trabalho de Othon, não havia papel para ele na nova produção. Corisco seria vivido pelo ator Adriano Lisboa, que desistiu do papel pouco depois para fazer o filme "Crime do Sacopã".

O assistente de direção Paulo Gil Soares foi quem convenceu Glauber a escalar Othon (um moreno de 1,65m) para o papel do cangaceiro que, na vida real, era alto, loiro e de olhos verdes. "Eu me preparava para estrear a peça 'Eles Não Usam Black-tie' (de Gianfrancesco Guarnieri), mas Glauber me queria no filme. Ele, então, comprou meu passe", diverte-se. "Deu dinheiro para a produção do espetáculo e, em troca, me roubou por 15 dias para as filmagens".

Othon teve papel fundamental na concepção de "Deus e o Diabo". "A importância do filme não é por minha causa, ou de Geraldo (Del Rey) ou de Yoná (Magalhães). O mérito do filme é de um menino de 23 anos [Glauber] que foi generoso a ponto de mudar o roteiro por sugestão de um ator [Othon]".

No roteiro original, havia flashbacks de Corisco ao lembrar sua amizade com Lampião. "Sugeri que Glauber fizesse uma experiência brechtiana (quando a história depende do espectador e de sua imaginação) e deixasse o Corisco narrar a própria história ao invés de ilustrá-la. Ele topou".

Nas duas horas de conversa, regada a água e café, a entrevista foi interrompida apenas no final por um fã que esperava o momento certo para abordá-lo e expressar seu desejo: que Othon viva até os 120 anos. O ator agradece e seus olhos se enchem d'água. "Que coisa, não? Do elenco, só eu e Yoná estamos vivos. Espero que eles não me chamem para fazer um filme lá em cima".

Glauber Rocha, de camisa aberta, dirige uma cena de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", em 1963 Imagem: Divulgação

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