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Filmes italianos que mostram atuação da máfia no país se destacam em Veneza

Neusa Barbosa

Do UOL, em Veneza

04/09/2014 11h59

A boa (ou seria melhor dizer má?) e velha máfia voltou com toda a força na seleção do Festival de Veneza 2014, tanto na competição pelo Leão de Ouro, quanto fora dela. Concorrendo ao troféu, o drama “Anime Nere”, de Francesco Munzi, que reconstitui, em detalhes e de forma épica os bastidores da implacável destruição de uma família mafiosa calabresa, os Carbone, foi, aliás, o melhor entre os quatro candidatos italianos deste ano.

Nenhuma das muitas tragédias que ocorrem nesta ficção, candidata a vários prêmios, filmada na própria região que retrata e com um ar de “O Poderoso Chefão” feito em casa, entretanto, teve a menor possibilidade de chegar perto do impacto de dois outros filmes italianos, os documentários extremamente criativos “Belluscone – Una Storia Siciliana”, de Franco Maresco, e “La Trattativa”, de Sabina Guzzanti.

Embora ambos tenham sido apresentados fora de competição, não deixaram de ser incluídos na programação em horários e sala nobres, como a recém-reformada Darsena, novinha em folha, agora com 1.400 lugares, poltronas e equipamentos de som de última geração. E foram ambos prestigiados com sala cheia, aplausos durante e após a projeção e ampla atenção da imprensa.

Ligações perigosas

Censurada em 2003 pela emissora estatal italiana RAI, que chegou a tirar do ar o programa satírico “Raiot”, no qual imitava com perfeição o até então primeiro-ministro Silvio Berlusconi, a atriz, produtora e diretora Sabina Guzzanti realizou, em “La Trattativa”, a mais ampla e contundente revisão de um dos mais sujos e sangrentos capítulos da história italiana: os alegados acordos secretos entre chefões da máfia e integrantes do primeiro escalão do governo, entre eles Berlusconi, o ex-senador Marcello Dell ‘Utri e até mesmo o atual presidente do país, Giorgio Napolitano.

Direta, Sabina resgata esses conchavos por baixo do pano, que nos últimos 20 anos custaram até as vidas de alguns juízes que os investigaram, como Giovanni Falcone e Paolo Borsellino. E a diretora o faz mostrando todos os nomes e fotos dos envolvidos, vários ainda vivos e exercendo cargos públicos.

Na concorrida coletiva de imprensa do filme, nesta quarta (3), Sabina chegou aplaudida pelos jornalistas presentes, na maioria italianos. E não se esquivou de nenhuma pergunta. Questionada se tinha sido de algum modo ameaçada, ela negou. “Não recebemos nenhuma intimidação. Se nos aconteceram algumas coisas desagradáveis, é porque estamos vivendo um período desagradável.”

Unindo material de arquivo, entrevistas –com juizes, procuradores e também alguns dos chamados ‘pentitos’ (literalmente, “arrependidos”, ou seja ex-mafiosos que denunciam seus antigos companheiros e vivem sob novas identidades)– e também encenações, algumas humorísticas, com atores, a diretora assina um filme que, ela espera, “dê mais coragem do que depressão”. Até porque Sabina lembra que ainda estão abertas diversas investigações sobre o tema do filme na Itália –na Procuradoria de Palermo, por exemplo.

Falando como uma candidata, mas sem ser política, a diretora foi novamente aplaudida na coletiva quando disse: “As instituições italianas têm medo da democracia”. O filme será lançado nos cinemas da Itália em outubro.

Podres sicilianos

Igualmente inovador em sua forma, mas sem ser tão abrangente,  outro documentário, “Belluscone – Una Storia Siciliana”, de Franco Maresco, é mais regional no enfoque, destacando as relações viscerais do ex-primeiro ministro Berlusconi com a máfia siciliana –a cujo antigo chefão, o já falecido Stefano Bontate, o político deveria sua  ascensão na carreira.

Como em “La Tratattiva”, Maresco ampara o seu filme em uma estrutura semificcional, usando o crítico e cineasta italiano Tati Sanguinetti como uma espécie de mestre de cerimônias, que encena a investigação de um suposto desaparecimento do diretor Maresco, conduzindo entrevistas, muitas hilariantes, com personagens como o ex-mafioso Ciccio Mira, hoje um empresário musical, e o compositor Erik, autor de uma canção popular entre jovens sicilianos, “Vorrei Conoscere Berlusconi” (“quero conhecer Berlusconi”, em livre tradução) –sucesso interpretado no filme por um outro jovem cantor popular, Vittorio Ricciardi.

Se recorre à ironia e até faz rir, “Belluscone...” –cujo título alude à pronúncia siciliana do nome do ex-primeiro-ministro– não brinca com o recado que pretende passar: o de que a máfia ainda é um assunto da maior seriedade e que, apesar de ter  perdido anéis em algumas regiões daquele país, continua muito poderosa.