Festival do Rio mostra que maturidade trouxe diversidade ao cinema nacional
Em 2015, o cinema nacional vai completar 20 anos de sua retomada (marcada pelo lançamento de "Carlota Joaquina", de Carla Camurati), e a seleção de longas na mostra competitiva do Festival do Rio 2014, que terminou nesta quarta (8), já deu algumas pistas da fase em que a nossa produção se encontra ao se aproximar da maturidade.
Da seleção de dez longas de ficção, apesar de muito diferentes entre si, praticamente todos fogem do hiper-realismo e dos temas sociais --violência, desigualdade, opressão-- que marcaram muito o cinema brasileiro na última década e produziram os maiores sucessos de crítica e público, como "Cidade de Deus", "Carandiru" e "Tropa de Elite".
Competindo pelo troféu Redentor, vimos alguns filmes mais difíceis de classificar --como o grande vencedor do festival, "Sangue Azul", de Lírio Ferreira, melhor filme de ficção, diretor e ator coadjuvante--, e muitos sobre temas "banais" do cotidiano: relacionamentos amorosos e familiares, amadurecimento e angústias pessoais, às vezes entremeados com questões mais políticas.
A diretora de seleção do Festival do Rio Ilda Santiago conta que esse fio condutor é algo que acaba acontecendo de forma instintiva, só percebido no final da seleção, mas que segue o que está sendo produzido no país no momento.
"Isso foi algo que pareceu muito claro na seleção, de que existiam muito mais histórias familiares, de relacionamentos, de amizades. Existe também um movimento muito mais claro de um cinema brasileiro mais urbano, que é algo que a gente vê nos últimos anos como uma presença mais constante, como existe também uma diversidade maior de dramaturgias", acredita.
Manuela Dias, diretora de "Love Film Festival", história de um casal que se conhece em um festival de cinema e segue se reencontrando ao longo dos anos, explica de sua parte a escolha por um tema mais cotidiano. "Acho que todos os temas podem circular num ambiente mais cotidiano, mas os temas que me interessam estão sempre ligados à questão do ser humano", afirma. "A gente está tentando pensar o mundo e as questões que nos tocam. E é importante falarmos do nosso mundo, não ficar sempre falando de um 'outro'. Porque, no final das contas, a maioria dos cineastas não são da favela, são da classe média. Então, é importante a gente também se expor", acredita.
Trailer do filme "O Último Cine Drive-In"
Para o diretor Iberê Camargo, que calca seu "O Último Cine Drive-In" na relação de um jovem com o pai distante e a mãe doente, este distanciamento de temas mais clássicos, de uma possível "culpa" que levava os cineastas a olharem para o social, tem a ver com o fato de que a classe média está fazendo mais filmes, e isso resulta em novos olhares.
"Acho que essa 'culpa' tinha muito a ver com a classe média-alta que fazia cinema, que era a classe intelectualizada. Alguém precisava falar da realidade que estava aí e ninguém falava, a mídia não falava", argumenta Iberê. "Então, quem tinha que falar era a arte mesmo. Hoje em dia está abrindo mais. Como a gente está fazendo mais cinema, está falando de vários assuntos".
Variedade
Para o presidente do júri do festival, o cineasta Karim Aïnouz, o que mais lhe chamou atenção na seleção da Première Brasil não foi uma linha temática, mas justamente a diversidade. "Quando você olha para o conjunto, eu acho que tem uma variedade que é muito representativa do que a gente está vivendo hoje no cinema brasileiro. Temos filmes com conteúdos políticos muito claros, que falam do que estamos vivendo hoje no Brasil, como 'O Fim e os Meios', do Murilo Salles, que é meio primo do 'Casa Grande'. Mas também tem filmes que são muito livres, no sentido de proporem um olhar para o mundo, que não são só filmes naturalistas, têm um olhar com muita personalidade", explica.
"Se tem algo que a gente possa sublinhar nesse sentido", continua Karim "é que estamos fazendo um cinema mais livre, menos naturalista. É como se durante muitos anos a construção, o gênero, fosse privilégio da televisão, e o cinema tivesse que ocupar o lugar do real, como se ele tivesse que ser um espelho do real. Um cinema naturalista, de câmera na mão, que segue o personagem. E o que eu acho que é muito bacana do que tem acontecido é que é o contrário. O 'Obra', por exemplo, é absolutamente não naturalista. Eu acho que a gente está conseguindo através do cinema construir universos muito próprios. E nesse sentido, a diversidade que vemos hoje é profunda, uma diversidade de olhares sobre o mundo", conclui.
Teaser de "Obra", com Irandhir Santos
Política entrelaçada com o cotidiano
E mesmo as questões do real, políticas e sociais, agora se entrelaçam de forma muito mais forte com o cotidiano, acredita Ilda Santiago.
"Talvez o que estabeleça um novo momento, um desabrochar de uma dramaturgia, é essa capacidade de contar histórias cotidianas, que podem parecer banais, mas sendo profundamente embasadas na história do país, no momento político, na história recente", diz a diretora do festival. "A gente não perdeu o nosso fio histórico de contar essas histórias dentro de um ambiente político. Acho que todos esses filmes [da competição] contam histórias cotidianas, urbanas, mas que estão firmemente calcadas em questões sociais e políticas".
Um exemplo disso é "Casa Grande", de Fellipe Barbosa, que fala de desigualdade social e questões de classe a partir do amadurecimento de um garoto de classe média-alta, de sua relação com o mundo e com a situação decadente de sua família.
"Eu acho que todo filme é político", concorda Iberê Carvalho. "A questão social é realmente uma coisa que sempre nos tocou muito, porque você sai na rua e bate com isso. Mas acho que isso [essa nova variedade de temas] também reflete o fato de que a nossa realidade social está mudando. A gente ainda tem muita desigualdade, claro, mas já não é mais um país tão desigual, como era antes", acredita.
Trailer do filme "Casa Grande"
Poesia e maturidade
Para Karim Aïnouz, todas as questões abordadas pelos filmes selecionados aparecem de forma mais poética. "Mesmo os filmes que falam de questões do momento, de questões sociais, eu acho que eles sempre fazem isso não de um jeito programático. É um cinema menos programático e mais poético. Isso é uma coisa muito clara, e vem depois de muitos anos de mudança e de aprimoramento", afirma.
Ele acrescenta que o cinema nacional, representado nessa seleção do Festival do Rio, vive um momento "bonito". "Acho que estamos vivendo um momento bonito. Na verdade, o cinema pós-retomada está fazendo 20 anos. Ele está deixando de ser um cinema mais adolescente e provavelmente será mais maduro daqui a pouco. Acho que isso é muito claro na maneira em que a gente tem mais liberdade para experimentar, tem menos peso para carregar nas costas".
Karim também ressalta a qualidade da produção atual. "É uma abordagem formal muito sofisticada. Essas duas gerações pós-retomada já têm muitas horas de voo. As pessoas estão filmando muito bem. Tem ali um jeito de filmar que eu acho que é do nosso tempo também. A gente filma mais, tem mais tempo, tem a coisa do digital. Mas, independente disso, eu acho que estamos chegando a uma sofisticação de linguagem cinematográfica", conclui o cineasta.
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