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Diretor inglês de "Trash", Daldry fez filme "brasileiro" graças a Meirelles

Natalia Engler

Do UOL, no Rio

12/10/2014 06h00

Mesmo ausente no encontro da equipe de "Trash - A Esperança vem do Lixo" com a imprensa, o cineasta Fernando Meirelles teve seu nome muito citado pelo diretor inglês Stephen Daldry, indicado ao Oscar em três ocasiões ("Billy Elliot", 2000; "As Horas", 2002; e "O Leitor", 2008). O brasileiro foi lembrado por seus trabalhos, mas também pelo apoio que deu à equipe internacional do longa filmado no Rio de Janeiro.

Daldry tinha nas mãos o livro "Trash", do também inglês Andy Mulligan, uma fábula sobre três garotos que vivem no lixão de um país fictício e encontram uma carteira que os coloca em rota de colisão com a polícia e políticos corruptos. O cineasta precisava decidir onde se passaria sua adaptação para o cinema, roteirizada por Richard Curtis (de "Bridget Jones", "Simplesmente Amor", "Um Lugar Chamado Notting Hill").

"Eu queria fazer algo diferente do que fiz antes, e gostei muito da ideia de fazer um filme de ação", contou Dandry ao UOL. "Mulligan viveu e lecionou no Brasil, na Índia e nas Filipinas. Tínhamos que escolher um lugar [para fazer o filme], mas, na verdade, viemos para o Brasil por causa dos maravilhosos atores que vocês têm e da tradição de trabalhar com atores não-profissionais, como em 'Cidade de Deus' e 'Cidade dos Homens'. E da estrutura da O2, do meu amigo Fernando Meirelles. Então, me pareceu um encaixe muito bom vir para o Rio". 

Curtis, o roteirista, também exaltou a qualidade da indústria nacional. "O Brasil tem uma indústria de cinema fantástica, e queríamos fazer um filme fantástico. Pensamos em outros países, mas sabíamos que não teríamos o apoio para fazer um filme da qualidade que queríamos em outro lugar", disse ele, durante encontro com jornalistas. "Quando viemos aqui e começamos a conhecer as pessoas, nos apaixonamos tanto pelo atmosfera, a coragem e o humor delas, que nos pareceu um bom lugar para filmarmos".

Trailer do filme "Trash - A Esperança Vem do Lixo

Co-produção

O filme, que estreou na última quinta, é uma das maiores coproduções Brasil-Reino Unido já realizadas, e também é uma parceria atípica para o cinema nacional, já que foi a produtora inglesa Working Title quem procurou a O2. "Mergulhamos fundo", contou o produtor Kris Thykier. "Geralmente começamos a produção na Inglaterra e depois levamos para o outro país. Mas dessa vez queríamos fazer tudo aqui".

Ele diz que ficou muito impressionado com a criatividade que encontrou no país. "O que fizemos parece um grande filme, mas em padrões internacionais é um filme bem pequeno. O que ficou claro quando viemos para cá é que há uma profundidade de criatividade", afirma.

Andrea Barata Ribeiro, sócia de Meirelles na O2, conta que houve uma conexão legal entre as produtoras. "As coproduções devem acontecer pela afinidade de projetos, não por questões financeiras. E todo mundo ficou muito animado em trabalhar com Stephen. Isso também para os atores. Criou uma grande expectativa. E a relação funcionou super bem".

Filme “brasileiro”

Pelo que conta toda a equipe, Daldry e Curtis esforçaram-se para fazer um "filme brasileiro". "Trabalhamos muito com Christian Duurvoort [preparador de elenco brasileiro] para fazer a história, as esperanças, os sonhos e visões de justiça e fama dos garotos aparecerem através dos olhos deles", diz Daldry.

Até Curtis, que se considera um roteirista meticuloso, teve que mudar sua maneira de trabalhar para fazer um filme que se adequasse à realidade brasileira. "Como um escritor que é muito cuidadoso para que todas as palavras que escrevo sejam ditas da maneira certa, mudei meu método de trabalho e trabalhei muito próximo do Felipe Braga [co-roteirista brasileiro] para ter certeza de que tudo que eu escrevia fazia sentido para ele", conta. "Quando Stephen filmou as cenas, frequentemente precisamos pegar o que eu havia escrito, tentar coisas diferentes, ver como os garotos e os outros atores reagiam, para que o resultado fosse um filme com integridade".

Para Selton Mello, que interpreta um investigador de polícia corrupto, "Trash" traz um olhar estrangeiro, mas com sensibilidade. "Acho que é um olhar estrangeiro de um artista sensível, alto nível, dos melhores diretores que existem. Você pega o roteiro, dá na mão de um camarada que dirige filme só de ação, superficial, aí seria um filme banal".

Wagner Moura, que interpreta um papel pequeno mas crucial no filme, concorda. “Nós temos essa tradição de fazer filmes sobre a situação social brasileira. Desde o cinema novo a gente faz isso. Então, às vezes somos um pouco refratários a que uma visão de fora olhe para essas mazelas”, diz. “E eu acho isso uma bobagem. Claro, ele é inglês, mas que bom que a gente tem um olhar profundo sobre o que acontece no Brasil. Eu não acho que seja um olhar que tangencie a superficialidade em nenhum momento. É diferente do nosso estilo de filmar, daquele hiper-realismo brasileiro”.

Moura conta que viu pessoalmente o empenho de Daldry em entender o país, e que o diretor participou até das manifestações de junho de 2013. "Ele foi para as manifestações sozinho, para a rua. Ele foi para a casa das crianças, conviveu com as famílias dos meninos, para entender realmente a relação com a família e a nossa cultura”, completa Selton. “É um cara que ficou um ano aqui antes de filmar, ele viveu no Brasil. Não é que chegou, montou a câmera e saiu filmando”.

A experiência de filmar no Rio marcou Daldry, que a classifica como uma das melhores de sua vida. “Foi uma experiência fantástica, provavelmente uma das melhores da minha vida. A equipe era incrível, e muito paciente, especialmente trabalhando com crianças. E trabalhamos de uma maneira particular, para tentar fazer as crianças se libertarem, se abrirem, brincar. Algumas vezes foi bem caótico, mas a equipe era fantástica com as crianças”, conta.

“E claro, é o Rio. A história não se passa no Rio mais conhecido. É sobre as coisas que estão nas periferias, no subsolo, por trás, em vez da beleza do Rio que você geralmente vê. Mas a beleza da história, eu acho, é a beleza das crianças, suas esperanças, fé, o senso de justiça. Acho que isso é uma das melhores coisas do filme e uma das melhores coisas na minha experiência aqui com os garotos”, conclui.