Topo

Super-heróis ajudam a fazer do cinema uma diversão de segunda classe

Cenas dos filmes "Batman v Super-Homem: Alvorecer da Justiça", "Vingadores: Era de Ultron" e "Homem-Formiga", que chegam aos cinemas até 2016 - Divulgação
Cenas dos filmes "Batman v Super-Homem: Alvorecer da Justiça", "Vingadores: Era de Ultron" e "Homem-Formiga", que chegam aos cinemas até 2016 Imagem: Divulgação

Inácio Araújo

Especial para o UOL*

01/11/2014 07h00

Os super-heróis nasceram e cresceram à sombra da Segunda Guerra Mundial. A uma luta sangrenta, gente como o Superman, o Capitão América e outros menos votados acrescentaram um toque (ou mais que isso) de fantasia.

Mas seu elo com a realidade sempre foi mais que palpável. Super-herói típico é um homem comum dotado de força extraordinária por obra da natureza ou do acaso. Sua característica mais frequente é a necessidade de se manter incógnito, o que favorece a identificação com as crianças: somos fracos, é verdade, mas secretamente somos invencíveis (quem melhor interpreta essa característica, no registro do humor, é a série da televisão “The Big Bang Theory”).

A magia, a existência de uma força superior e protetora sempre foi a pedra de toque do gênero. Daí o sucesso do mago Mandrake. Por vezes, podíamos até mesmo ser cúmplices do herói, como no caso do Fantasma, que vivia na África colonial supostamente há quatro séculos. Os tolos nativos acreditavam que era um espírito imortal, quando na verdade seus poderes e seu mistério passavam de pai para filho. No dia em que descobriram a farsa, acho eu, os africanos começaram o processo de descolonização!

O cinema e a TV, que sempre se alimentaram das coisas do mundo, inclusive as histórias em quadrinhos, antes ainda que elas se denominassem “graphic novels” e se tornassem pedantes, aproveitaram-se deles desde cedo. Nem sempre muito bem. Seriados como "Mandrake" sofriam com a falta de imaginação e energia – coisas impensáveis num herói dessa natureza. "Batman", o seriado de TV, parecia não levar muito a sério o heroísmo do herói, mas tiravam disso o encanto que fascinava a molecada dos anos 1960.

Deixemos de lado os heróis que o próprio cinema produziu. Tenho na lembrança que o primeiro herói a ganhar uma grande produção no cinema foi mesmo o Superman: justa precedência, pois então a era dos blockbusters apenas começava. O malsinado Christopher Reeve foi escalado para o papel. Eu prefiro o segundo filme de Superman, o de 1980, ao qual Richard Lester trouxe um lado de humor fascinante.

Foi, no entanto, “Batman”, no final dos anos 1980, os anos “dark” por excelência, quem fez do super-herói um herói dos estúdios de cinema: é verdade que os fãs das revistas em quadrinhos reclamaram da interpretação dada por Tim Burton, que fugia ao infantilismo habitual. Aqueles personagens cindidos, espalhando suas dores pela cidade, eram uma coisa realmente excepcional no mundo medíocre da indústria cultural.

Mas isso logo passou. Passou sem passar, se é que dá pra entender. Os efeitos especiais evoluíram. O cinema perdeu cada vez mais o elo com a realidade.

Estranho fenômeno, aliás: num determinado momento, o melhor do cinema americano, ao menos do cinema americano de massa, veio dos filmes para crianças: de “Fuga das Galinhas” a “Toy Story”, passando por esses em que o peixinho se perde do pai, ou em que a natureza sai dos eixos. Filmes com fantasia, dignidade, material para reflexão e que, acima de tudo, serviam fantasticamente ao “negócio”, o business: dava para levar os filhos e também os pais: dava para três gerações da família.

Se Batman continua sua saga, na versão mais banal e brutal de Christopher Nolan, vimos nos últimos anos a ascensão de outros grandes personagens, de Hulk ao Capitão América. Nenhum tão forte, no entanto, quanto o Homem-Aranha.

O Aranha ilustra bem, no entanto, a capacidade da indústria de cinema atual de vulgarizar tudo em que toca. Peter Parker é talvez o mais fascinante dos super-heróis porque o mais frágil. Não goza dos efeitos milagrosos de ter nascido em Krypton ou similares. Tudo de que dispõe é de uma teia. Que lhe permite voar de prédio em prédio, que lhe dá força animal, mas, ao mesmo tempo, é o lugar onde se enreda sua vida. Quanto mais heroico, mais perseguido pela mídia, mais incompreendido por seus semelhantes. Quanto mais apaixonado (e objeto de paixão), mais deve ocultar-se da amada.

"O Espetacular Homem-Aranha 2" - Divulgação - Divulgação
O Homem-Aranha na versão mais recente do cinema, em cena de "O Espetacular Homem-Aranha 2" (2014)
Imagem: Divulgação

Toda essa magia, que o gibi conseguiu preservar por décadas, o cinema pôs a perder depois de dois filmes muito bons. Mas parece que os caras não se aguentam: têm que dissipar o mistério, têm que acabar com o encanto sobrenatural, têm que vulgarizar tudo em que tocam.

Os super-heróis hoje sustentam o cinema de grande espetáculo por virtudes como derrubar prédios, salvar navios do naufrágio, aviões da queda, trens do descarrilhamento, isto é, coisas que o descolamento progressivo da realidade, a ausência de tensão entre fantástico e mundo real propiciam.

Os super-heróis, tal como concebidos nos anos mais recentes, garantem a glória da Marvel e a sobrevivência dos estúdios, é verdade. Mas ajudam a fazer do cinema uma diversão de segunda classe: o lugar onde a gente vai por falta do que fazer, depois das compras, para se encher de pipoca ou passar mensagens pelo celular.

Eu me incomodo, é verdade, mas o cinema não dá a mínima bola para mim. Assim sobrevivem as grandes produções, assim garantem-se as filas do domingo. Eu mesmo às vezes gosto mais de ir lá para ficar vendo as filas: nada mais triste do que o cinema sem elas. 

* Inácio Araújo é crítico de cinema do jornal Folha de S.Paulo