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Premiada, Muylaert diz: "no Brasil não é chique limpar bunda de criança"

Estefani Medeiros

Do UOL, em Berlim (Alemanha)*

15/02/2015 13h07

Após fazer uma estreia premiada em Sundance, onde Regina Casé ganhou o prêmio de Melhor Atriz, “Que Horas Ela Volta?”, novo longa da diretora paulistana Anna Muylaert, fez exibições de sucesso na Berlinale.

No festival alemão, o filme foi escolhido como favorito do público na Mostra Panorama e fechou acordos de distribuição em dez países europeus. O produtor Fabiano Gullane antecipou que para a estreia no Brasil, ainda sem data prevista, a ideia é de que empregadas e babás levem a carteira de trabalho ao cinema e paguem menos. 

Uma semana antes de receber o prêmio na tarde deste sábado (14), a diretora conversou com o UOL, quando disse que o projeto foi um chamado da maternidade. "Embora dirigir seja muito difícil, é mais fácil do que criar um filho. Sempre fui muito dedicada ao trabalho, mas quando o José nasceu, vi que aquele trabalho era o mais importante da minha carreira. Então comecei a escrever os livros sobre o Castelo (Rá-Tim-Bum), ganhava muito mais do que escrevendo roteiro para a TV e consegui ficar um ano em casa. Na sociedade comum não é normal ter uma babá, não é chique limpar a bunda da criança, não é chique botar a mão na merda."

Inspirada pela babá da sua família, Dagmar, a diretora conta que ser mãe lhe ajudou a perceber a história pelo outro lado. “O chamado da maternidade foi muito forte e eu não só vi que era chique sim, mas como era sagrado, quem não faz isso não está fazendo o bom da vida. Quanto mais merda você limpar, mais você vai crescer. E isso é uma sabedoria muito feminina. Vejo essa questão da babá como uma das questões principais no Brasil, a desvalorização da educação já começa na mãe. E todo esse abismo social que a gente tem, a principal causa é a disparidade entre a escola pública, a escola privada e o valor da educação."

No evento para a imprensa, as principais perguntas dos jornalistas estrangeiros foram relacionadas a como o filme reflete as discussões políticas do país. Entre as cenas mais comentadas, estão a ousadia de Jéssica (Camila Márdila) ao pular na piscina da casa dos patrões de Val (Regina Casé), uma babá e empregada doméstica que ainda dorme no trabalho. Vinda do Nordeste para estudar arquitetura na USP, Jéssica questiona as relações de poder e a extrema dependência dos empregados, que fazem parte da família, mas de forma limitada.

Muylaert explica a situação colocando o fenômeno dos rolêzinhos como exemplo. “No Brasil teve um evento muito famoso chamado rolêzinhos, que era sobre jovens de classe baixa que iam aos shoppings, considerado um lugar da elite. Eles iam para passear, não faziam nada, não roubavam. Gerou medo e com isso, uma grande discussão sobre o que se pode ou não fazer. Quando ela pula na piscina é meio isso.”

A personagem surgiu inicialmente como o estereótipo da filha da empregada, que podia ser abusada, era frágil e pobre e também terminava virando babá. Mas Anna explica que os esforços eram para mostrar algo além, o que lhe tirou algumas noites de sono no final do projeto, quando decidiu que a personagem seria estudante de arquitetura. “Esse fator mudaria toda a dinâmica da casa”, explica. O maior desafio do roteiro foi mudar o ângulo de visão. “Nasci do outro lado da porta da cozinha, em uma família de classe média, levou tempo para que conseguisse filmar pelo outro lado.” 

Apesar de usar a comédia como ferramenta, a diretora diz que sua ambição era fazer algo sério. “Quando comecei esse projeto, queria que ele fosse algo sério, não um final de novela. Sempre fui muito revoltada com essa questão. Nós tínhamos babá e, na escola, quando a professora me pedia pra desenhar a família, não entendia porque ela não poderia estar no desenho, isso sempre me confundiu."

Anna Muylaert e Camila Márdila recebem prêmio no Festival de Sundance 2015 - Kristin Murphy/EFE - Kristin Murphy/EFE
Já premiada em Sundance, Anna Muylaert (esq.) ganhou prêmio do público em Berlim. À direita, Camila Márdila, que interpreta Jéssica em "Que Horas Ela Volta?".
Imagem: Kristin Murphy/EFE

“O espírito escravagista ainda é muito grande no Brasil”

Muylaert acredita que além de expor as relações de trabalho em países latinos, o filme retrata as divisões de classes atuais, um tema universal.

“Todo lugar tem primeira, segunda, terceira classe. Gente que não cumprimenta o porteiro, não cumprimenta o motorista. Tem outra coisa que o filme fala sem falar, que é a questão da mulher, o papel de segunda classe que a gente tem. O machismo não é relacionado a homem ou mulher, é praticado por todos. Não necessariamente que seja pior, mas o homem é tão narcisista que às vezes ele nem repara que você está na sala, eles não têm hábito de ouvir, olham pela janela, não tem interesse. E esse papel da mãe, que é a maternidade, que o homem também deveria fazer, não é desenvolvido no homem. O cara que tem filho e abandona, acha que vai chegar aonde?”, questiona.

Camila concorda e diz que em Sundance a percepção foi a mesma. “Foi incrível a recepção das pessoas, existia um medo de mostrar o filme para quem não tem a cultura da babá como no Brasil, eles não têm uma ideia. Mas como a Anna previu, todo mundo é um cidadão de segunda classe em algum lugar. Então o filme amplia a possibilidade de leitura, a compreensão das pessoas foi muito grande.”

Iniciante, a atriz comenta que o filme representa duas gerações com diferentes tipos de educação. “Não que o Brasil já seja a educação da Jéssica. Mas esta é uma visão possível de um Brasil que eu desejo, um pouco menos limitado. Não essa coisa de educação mais formal, você precisa pedir permissão para fazer algo o tempo inteiro.” 

“Quem está sentindo falta da empregada vai odiar”

Entre as empregadas, Muylaert revela que a cena em que Val rouba um jogo de café que deu de presente para a patroa e foi ignorada, foi a que mais despertou risadas. “Chamei algumas ex-empregadas e a minha musa, minha segunda a mãe, a Dagmar, e algumas empregadas ficaram chocadas com a atitude da Jéssica, de achar que ela é arrogante. E na verdade ela não faz nada, ela só quer comer na mesa”, comenta.

Com o filme ela queria “valorizar o que não é dinheiro”. Ela diz que existem duas interpretações, uma que pode ser mais intelectual, para a elite, e para as pessoas que se identificam com a história. “Que Horas Ela Volta?” é ainda um diálogo sobre um velho Brasil, representado pela mãe, e um novo país, representado pela filha. “Minha ideia é mostrar que a segunda mãe às vezes é muito mais afetiva do que a primeira, é mais íntima. Espero que no novo Brasil não haja tanto do antigo, mas que o novo não perca a afetividade. Espero que ainda melhore”. 

Sobre as reações que espera no país, onde muito tem se discutido sobre divisões de classes e o PEC das domésticas, aprovado em 2013, ela diz que “faltava um filme que falasse com respeito sobre o assunto. Acredito que as pessoas que estão sentindo falta da empregada para levar o ‘Toddynho’ pro filho delas à noite vão odiar o filme. Mas tudo bem, o importante é que ele seja usado para abrir discussões.”

* Colaborou Manoella Barbosa