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Documentário relembra os "filmes de suvaco" da Boca do Lixo paulistana

Cena de "Rua do Triumpho - O Filme", em que ator faz papel de "suvaquista" - Jesus Carlos/Divulgação
Cena de "Rua do Triumpho - O Filme", em que ator faz papel de "suvaquista" Imagem: Jesus Carlos/Divulgação

Guilherme Solari

Do UOL, em São Paulo

20/04/2015 13h18

A Boca do Lixo, polo cinematográfico que existiu no centro de São Paulo entre os anos 1960 e 1990, reunia produtores, atores, atrizes, e diretores. O que a maioria não sabe é que na região também circulavam figuras que ficaram maldosamente conhecidas como "suvaquistas". Eram roteiristas iniciantes que iam de produtora em produtora com um roteiro debaixo do braço (daí o apelido), tentando emplacar o seu projeto.

"Na época, todo o mundo tentava apresentar os seus projetos roteirizados. As pessoas chegavam, e você não sabia se era jornalista ou famoso", conta ao UOL o cineasta Clery Cunha, diretor de filmes como "O Rei da Boca" (1982) e "Joelma 23º Andar" (1980). Ele interpreta a si mesmo em "Rua do Triumpho - O Filme", longa ainda em fase de edição que foi dirigido por Mário Vaz Filho e mistura documentário e ficção para homenagear o auge da Boca do Lixo.

"Isso de ‘suvaco filmes’ era falado na época como gozação", conta Mário Vaz Filho. "E, conversando recentemente com uns amigos, me veio essa ideia para o filme, e incluí um segmento de ficção com essa história. Eram filmes de mesa de bar, que fulano dizia que ia fazer, que ia ser demais, mas poucas vezes os filmes desse pessoal eram rodados de verdade.

Segundo o produtor de "Rua do Triumpho - O Filme”, Diomédio Piskator, no segmento dedicado aos “suvaquistas”, quatro pretendentes aparecem com suas ideias malucas para tentar transformá-las em filmes. "Um quer fazer um documentário sobre a falta d’água, que já naquela época acontecia; outro quer fazer um faroeste, e outro um musical, assim por diante. Eles vão para um produtor que acaba os despachando, fala que ‘não tem mulher pelada’, nessas coisas. E depois, mesmo assim, eles ficam contando vantagem.""

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  • Maria do Carmo/Folhapress

    A maioria era de ideias completamente malucas, o sujeito chegava com um calhamaço, e você sentia o bafo de pinga antes de o cara te cumprimentar

    Clery Cunha, cineasta

Clery Cunha lembra que esses roteiristas iniciantes se misturavam com os artistas e as equipes de produção nos bares Soberano e Ferreira, tradicionais pontos de encontro da Boca. Ele aponta dois tipos “clássicos” de “suvaquistas” que rondavam diariamente as produtoras da Boca do Lixo.

"Tinha aqueles com uma fonte de renda própria, que chegavam com uma ideia e acabavam bancando a produção”, diz o cineasta, citando como exemplo "Nua e Atrevida", de 1972, escrito e dirigido por Flávio Ribeiro Nogueira. "O Flávio era médico e chegou na Boca com um roteiro, mas ele tinha recursos próprios e bancou ele mesmo a produção". O médico/suvaquista ainda escreveria, produziria e dirigiria mais dois filmes: "Obsessão Maldita" (1973) e "Bonecas Diabólicas" (1975).

O segundo tipo era de pessoas que, além de não ter dinheiro, muitas vezes apareciam “desesperadas”, tentando vender roteiros mirabolantes. “A maioria era de ideias completamente malucas, o sujeito chegava com um calhamaço, e você sentia o bafo de pinga antes de o cara te cumprimentar. Mas uma vez apareceu um sujeito com um roteiro chamado ‘A Mulher que Veio de Longe’, com uma história de uma boneca inflável de um nazista que morava no Recife. Seria uma produção cara, com cenários e figurino de época e festa em transatlântico. Eu achei criativo e vi que o homem passava necessidade, então comprei os direitos do roteiro pelo que hoje deve ser uns R$ 500. Ele chegou a chorar ali na minha mesa. Eu até tentei dar andamento ao filme, mas seria muito caro e ninguém se interessou. O roteiro está até hoje na minha gaveta”, conta Clery.

Segundo o diretor, o assédio dos “suvaquistas” era constante. “Eles descobriam nosso nome, nosso horário, faziam de tudo. Lembro de um caso de um que ofereceu um café para o Ozualdo Candeias [diretor de filmes como ‘A Margem’ e ‘Meu Nome é Tonho’] no bar do Ferreira para explicar o roteiro. O Candeias até ouviu pacientemente e, quando acabou o palavrório, ficou sem saber o que responder para o homem. E daí o Ferreira [dono do boteco] foi quem quebrou o silêncio no final, perguntando: ‘o que eu quero saber disso tudo é: quem vai pagar o café?’.”

Ex-suvaquista

José Adalto Cardoso foi um dos cineastas que conseguiram entrar na carreira com um roteiro debaixo do braço. “Em 1979 eu tinha dez curtas produzidos e estava com o roteiro do meu primeiro longa”, conta. “Tentei diversas produtoras sem sucesso, elas até gostavam, mas não apostavam por eu ser novato, só com curtas no currículo. Até que um dia estava com a documentação para dar entrada na Embrafilme do meu longa ‘Tara!’. Quando ia para lá, passei pela Paris Filmes para ver outros assuntos, e o gerente, senhor João Pitta, viu o calhamaço que eu trazia. Pediu para dar uma olhada antes de eu levar na Embrafilme. Daí ele mostrou para o Alex Adamiu, e foi assim que nasceu o ‘Império das Taras’ (1980), título que o Alex deu.”

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Cartaz do filme "O Império das Taras", de José Adalto Cardoso
Imagem: Divulgação/Cinemateca Brasileira

O filme seria o primeiro dos dez longa-metragens de José Adalto. De acordo com ele, a falta de uma hierarquia na Boca do Lixo fazia com que qualquer pessoa do meio pudesse ter certo contato dos diretores e produtores. “O Oswaldo Massaini era o produtor mais cobiçado. Chegava de motorista, mas depois até ele ia no Soberano junto de todo o mundo. Não tinha aquilo de ter de colocar um terninho para ir conversar com um produtor, era bem informal.”

José Adalto, no entanto, diz que não conhecia “suvaquista”. “Mas foi assim mesmo que eu comecei a minha carreira, falando com muitas produtoras. E nunca fui cara de pau, ia sempre com indicação de alguém, que indicava para mais alguém, até que eu consegui fazer o meu filme.”

Em "Rua do Triumpho - O Filme", Clery Cunha interpreta a si mesmo em uma entrevista sobre a Boca para um repórter fictício. Ele diz que, durante as filmagens, chegou a se confundir e achar mesmo que estava na rua do Triunfo dos anos 1970. “Entrei no local onde era o Soberano. Eu diria que 70% do que foi feito na Boca do Lixo teve o primeiro lampejo de ideia nascida numa mesa do bar Soberano. Eu me transportei e vi o balcão na minha frente. Eu fiquei tão concentrado e narrando e, de repente, estava de volta ao passado, vi na minha frente o Serafim [Teixeira, ex-proprietário do Soberano].”

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  • Eles descobriam nosso nome, nosso horário, faziam de tudo. Lembro de um caso de um que ofereceu um café para o Ozualdo Candeias no bar do Ferreira para explicar o roteiro. O Candeias até ouviu pacientemente e, quando acabou o palavrório, ficou sem saber o que responder. E daí o Ferreira foi quem quebrou o silêncio no final, perguntando: ‘o que eu quero saber disso tudo é: quem vai pagar o café?’

    Clery Cunha, cineasta

No filme, Clery Cunha é acompanhado também por Zé da Ilha, compositor e ator veterano que participou de mais de 60 filmes realizados na região. Segundo Mário Vaz Filho, o objetivo da participação de Zé da Ilha no filme é lembrar os atores da Boca do Lixo, mas ele também quis lembrar os profissionais técnicos do cinema da região.

“Os atores até que são lembrados, mas o pessoal da técnica, que carregava nas costas as produções da Boca do Lixo, esses ficaram esquecidos de vez”, diz Vaz Filho. O diretor também fala das dificuldades de encontrar fundos e distribuição para o cinema independente. “Trabalhei na Boca por mais de 30 anos e sempre recebi e sempre paguei, não tinha essa de amor à arte, não. A gente podia ganhar pouco, mas ganhava alguma coisa. Desta vez estamos fazendo sem verba.”

O cineasta lamenta a situação atual do cinema brasileiro: “Ou você ganha muito quando recebe verba pública ou faz na raça. Ou você faz uma produção grande, ou a custo quase zero. Custo médio é dinheiro perdido. As pequenas produções de R$ 100 mil viram dinheiro jogado fora. As distribuidoras reclamam que não tem ator global, não tem isso, não tem aquilo”.