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Menino teve que virar bom aluno para atuar no curta que foi para Cannes

Eduardo Schiavoni

Do UOL. em Rio Claro

16/05/2015 06h00

"Faz a foto, mas não o meu machucado. Fiz na bicicleta, não quero que a foto fique feia." Dita do alto de uma árvore no Centro Cultural Roberto Palmares, em Rio Claro (a 175 km de São Paulo), pelo ator-mirim David Martins Costa, 13 anos, a frase mostra um pouco da personalidade do adolescente, que interpreta o personagem principal do curta-metragem "Command Action", dirigido por João Paulo Miranda Maria. O filme será exibido na Semana da Crítica do festival de Cannes, mostra paralela dedicada aos primeiros e segundos filmes de cineastas do mundo todo. As sessões ocorrem entre os dias 14 e 22 de maio.

Inquieto, bagunceiro, carismático e um tanto quanto hiperativo, David, que subiu na árvore durante uma pausa na entrevista ao UOL. Ele conta que chutou, sem querer, o pedal de sua bicicleta, razão do curativo na perna. "Fiz arte, né, vó?", diz ele, dirigindo-se, com um sorriso, a Claudete Martins, 57, com quem mora. Ela concorda e comenta com a reportagem: "E você ainda perguntou se ele era bagunceiro. Nem preciso responder”.

Ao lado da avó do garoto, Rogério Borges, professor de geografia, acrescenta. "Não posso dizer muito, porque me identifico com a turminha dos bagunceiros. E o David certamente é um dos líderes do grupo", diz ele, que foi professor do ator-mirim na escola estadual Roberto Garcia Losz, onde o menino estuda.

Claudete Martins

  • Eduardo Schiavoni/UOL

    Ele é muito inteligente, mas bagunça demais. Já estava cansada de ouvir que ele era bagunceiro, que atrapalhava as aulas, que conversava demais. Aí, não tive dúvida. Falei que, se ele quisesse fazer cinema, tinha que melhorar na aula. E deu certo

    Claudete Martins, avó de David

Diretor-assistente de “Command Action”, o professor percebeu na sala de aula que David era perfeito para o papel. "Ele é um menino diferenciado, que chama a atenção pelo carisma. A intenção original era selecionar alguém do teatro para fazer o papel principal, mas sugeri ao diretor João Paulo Miranda Maria que fizesse uma seleção com alguns dos meus alunos da rede estadual. O David se sobressaiu e ganhou o papel. Indiquei quatro alunos, mas tinha certeza que o papel seria dele", conta.

De acordo com Borges, a escolha de David surgiu da necessidade de se ter um ator com ginga para interpretar o personagem, um menino que sai de casa para comprar comida para a família e se encanta com um robô de brinque vindo do Paraguai. "O David tem essa ginga, esse jeito de falar, que é o que estávamos buscando. Ele tem um carisma natural, puxa os olhares e toma conta da câmera", disse.

Exigência da avó
Entre a seleção do elenco e a filmagem do curta, ocorrida em julho de 2014,  David teve de cumprir uma exigência da avó, que só o deixaria participar do filme se ele mudasse o comportamento na escola. "Ele é muito inteligente, mas bagunça demais. Já estava cansada de ouvir que ele era bagunceiro, que atrapalhava as aulas, que conversava demais. Aí, não tive dúvida. Falei que, se ele quisesse fazer cinema, tinha que melhorar na aula. E deu certo", conta Claudete, ressaltando, porém, que o neto nunca repetiu. "Está na sétima série e sempre bagunçou. Mas nunca perdeu o ano."

Segundo o diretor João Paulo Miranda Maria, David também foi cobrado pelos produtores para que melhorasse o desempenho escolar. "A gente cobrou dele outro comportamento. O estímulo funcionou e, com a seleção para Cannes, a melhora ficou ainda mais evidente. Isso mostra que a autoestima faz diferença na vida de qualquer pessoa", conta.

David Martins

  • Divulgação

    Minha família não passa fome, mas não temos muito dinheiro para esbanjar. Sei bem o que é querer uma coisa e não poder ter

    David Martins, estudante e ator

Para Borges, a arte, no caso de David, teve um papel importante como motivação da mudança de comportamento. "Um dos papéis da arte é justamente esse, de formação. Ele conseguiu focar em uma coisa que gosta muito, que é atuar, e entendeu que a educação formal é importante para que ele possa se desenvolver, tanto como ator quanto como ser humano. O comportamento melhorou e, graças a Deus, ele pôde rodar o filme", conta.

"Foi fácil"
Dono de um olhar expressivo, David realizou uma interpretação capaz de emocionar nos 14 minutos do curta, rodado em Rio Claro e finalizado com ajuda de rifa. Fazer o personagem que se encanta com o brinquedo e se esquece de comprar comida para a família, de acordo com David, foi fácil. "Minha família não passa fome, mas não temos muito dinheiro para esbanjar. Sei bem o que é querer uma coisa e não poder ter", conta ele, que é o segundo entre sete irmãos e vive com três deles na casa da avó. Os outros moram com a mãe, Elaine Martins, 34.

A família vive em um bairro da periferia de Rio Claro. A avó tira sua renda de pequenos serviços, como fazer unha ou acompanhar idosos no hospital uma ou duas vezes por semana. "Geralmente fico à noite [no hospital], pagam dobrado. A diária de R$ 100 me ajuda", conta.

David e todos os seus irmãos estudam na rede pública. Em casa, não há computador. "Preferi comprar uma máquina de lavar do que um computador. Quando acabar as prestações, quem sabe", diz a avó, que admite não ir ao cinema com frequência. "Assisto [a filmes] mais na televisão, mesmo. Cinema, vixe, tem anos que não vou."

Famoso na cidade
Sem ainda muita ter ideia do significado da seleção de “Command Action” para o Festival de Cannes, David diz  que ganhou parabéns de amigos, mas que a melhor coisa por ter se tornado protagonista do filme ocorreu muito antes de as filmagens começarem. "Eu apostei com um amigo quem conseguiria o papel principal. E ganhei a aposta. Não apostamos nada, dinheiro, nada disso, mas só pra ver quem ia vencer mesmo", conta com orgulho.
Vaidoso, David gosta de ver o curta sempre que possível e se encanta com o assédio da mídia. Durante a entrevista, ele fez questão de ver uma reportagem exibida na TV, em que um trecho do curta era exibido. "Você está famoso, todo o mundo te viu na televisão", disse, ao fim do vídeo, o irmão Gabriel, 16, que também acompanha a reportagem. "Fiquei mesmo, agora todo o mundo me conhece", completou David. "Por isso quero continuar a ser ator."

A avó Claudete também não esconde o orgulho do neto. "Veja só, ele é bagunceiro, dá trabalho. É lindo, mas dá trabalho. E foi o escolhido. Entre tanta gente boa, quem fez o filme foi ele. E agora o mundo inteiro está vendo meu neto, lá na França. Nem dá para explicar essa sensação."

Claudete, porém, conta que a escolha de David não foi bem vista na escola onde ele estuda. "Me chamaram, ouvi de um professor que havia gente mais qualificada. Disseram que um menino tão bagunceiro não podia ter sido escolhido, que tinha gente mais boazinha. Mas foi ele. Deus apontou o dedo, e foi ele", lembra.

Borges2

  • Nosso filme tem um pouco de cinema-verdade, porque o cenário não foi criado, é uma feira que ocorre realmente. Nós nos adaptamos a ele, mas tudo que acontece [no filme], inclusive os diálogos de fundo, não é encenado. É real

    Rogério Borges, diretor-assistente de "Command Action"

“Command Action”, cuja estreia mundial será em Cannes, competirá com outros nove filmes de curta ou média-metragem de países como a Suécia, França, Indonésia, Estados Unidos, Romênia e Itália, selecionados dentre uma lista de 1.750 títulos. O júri da Semana da Crítica será presidido pela atriz e diretora israelense Ronit Elkabetz.

Lei Rouanet e rifa
Para rodar o filme, o Coletivo Kino-Olho, responsável pela produção, mobilizou uma equipe de cerca de 20 pessoas. As filmagens ocorreram em três domingos seguidos, começando sempre por volta das 4h30 da manhã e terminando antes do meio-dia. O cenário utilizado foi uma feira livre que acontece todos os domingos no bairro do Cervezão, em Rio Claro.

"Nosso filme tem um pouco de cinema-verdade, porque o cenário não foi criado, é uma feira que ocorre realmente. Nós nos adaptamos a ele, mas tudo que acontece [no filme], inclusive os diálogos de fundo, não é encenado. É real", conta Boges.

O diretor-assistente ressalta ainda que David teve um desempenho perfeito como ator. "Não tivemos que refazer nenhuma cena por conta de problemas com ele. E a atuação dele foi primordial para o sucesso do filme", conta.

David, no entanto, tem uma queixa sobre as filmagens: o horário. "Fora acordar muito cedo, foi bem legal. Mas chegava no fim do dia de gravação, e eu estava muito cansado, querendo dormir", lembra.

Financiamento e projetos
Para rodar “Command Action”, o coletivo de Rio Claro conseguiu o direito de captar R$ 28 mil pela Lei Rouanet, mas só obteve, de fato, R$ 13 mil. Além desse recurso, houve a venda de uma rifa, que arrecadou R$ 1,5 mil. "Esperamos conseguir captar o dinheiro restante. Ainda não pagamos a equipe", diz Borges.

Rogério Borges

  • Eduardo Schiavoni/UOL

    O David tem essa ginga, esse jeito de falar, que é o que estávamos buscando. Ele tem um carisma natural, puxa os olhares e toma conta da câmera

    Rogério Borges, diretor-assistente de "Command Action"

Além de conseguir o dinheiro para pagar a equipe do curta, a expectativa do coletivo quer agora buscar recursos para filmar dois longa-metragens. Ambos estão com projetos já aprovados no governo federal, sendo que o grupo foi autorizado a captar R$ 560 mil para um dos filmes e R$ 360 mil para outra.

"Temos projetos para este ano, estamos lutando para conseguir a captação. Fazer cultura e arte no interior nunca é fácil, mas as coisas estão caminhando e esperamos que, com essa seleção para Cannes, fique mais fácil", diz Borges.