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Atrocidades da ditadura são relembradas em festival de curtas de São Paulo

Cláudio Guerra, ex-delegado da Polícia Civil que assassinou e incinerou militantes, em cena de "Uma Família Ilustre" - Reprodução - Reprodução
Cláudio Guerra, ex-delegado da Polícia Civil que assassinou e incinerou militantes, em cena de "Uma Família Ilustre"
Imagem: Reprodução

Mariane Zendron

Do UOL, em São Paulo

31/08/2015 06h00

Ex-presos políticos contam ainda com pesar as torturas que sofreram no navio Raul Soares, transformado em prisão no Porto de Santos, no ano do golpe militar, em 1964. Não era incomum passar um dia no frigorífico da embarcação e no dia seguinte, dormir ao lado da caldeira. Os relatos dos torturados estão em "Nau Insensata", curta-documentário que fez parte do programa Rastros de Ódio, do 26º Festival Internacional de Curtas em São Paulo.

Em tempos em que manifestantes pedem a volta dos militares ao poder, a maneira que o festival encontrou de se posicionar foi cutucando a memória do espectador. Além de "Nau Insensata", outros quatro curtas trouxeram à tona os horrores dos regimes antidemocráticos em diversos países. Com o nome Ratros de Ódio, o programa também homenageou uma famosa obra do diretor John Ford

Para a coordenadora do programa, Anne Fryszman, atrocidades como essa relatada em "Nau Insensata" aconteceram no mundo todo e não podem acontecer de novo. "Eu queria muito que as pessoas que foram às ruas [pedir intervenção militar] assistissem esse curtas. Não para mudar de ideologia, mas porque atrocidades aconteceram no mundo todo e não podem acontecer de novo", disse Anne, ao UOL. Francesa, Anne trabalha há 12 anos no festival.

Anne Fryszman

  • Eu queria muito que as pessoas que foram às ruas [pedir intervenção militar] assistissem esse curtas. Não para mudar de ideologia, mas porque atrocidades aconteceram no mundo todo e não podem acontecer de novo

    Anne Fryszman, Coordenadora do Festival de Curtas de São Paulo

Antes da exibição do programa no dia 22 de agosto, no Espaço Itaú, Anne se posicionou contra a intervenção militar frente aos espectadores. "Aos que vão às ruas pedir a volta dos militares, talvez falte um pouco de história". Ao UOL, ela diz todos têm o direito de se expressar, mas "não se pode brincar com a tortura".

A reunião desses curtas em um único programa, segundo Anne, aconteceu naturalmente. "Tínhamos bons filmes na mão e um momento particular do Brasil. A discussão política ficou tão importante na sociedade brasileira de um ou dois anos para cá que esses assuntos chegaram naturalmente". 

Marcas de tortura são para sempre

Para o diretor de "Nau Insensata", tão difícil quanto achar os sobreviventes de tortura, foi fazê-los falar sobre o período. "São memórias difíceis mesmo. Por eles, isso ficaria escondido para sempre. Passaram vexame na época. Era motivo de vergonha ser um preso político", contou à reportagem. 

Entre os entrevistados, estão o ex-preso político e professor universitário da USP, Boris Vargaftig e ex-sindicalistas Osmar Golegã, Nelson Amado, Ademar dos Santos e Thomas Maack. "A impressão é que ninguém sairia vivo dali", diz um dos ex-prisioneiros. "Isso é tatuado dentro de nós, não sei se alguém consegue esquecer. Eu não esqueci", disse outro.

"[O navio] era uma coisa que o regime queria que as pessoas soubessem. Se você fosse sindicalista, militante, a resposta estava ali. Os jornais da época também tratavam os prisioneiros como bandidos". 

Produtora que trabalhou na pesquisa de vários documentário de Eduardo Coutinho, como "Edifício Master", Beth Formaggini também levou para o festival um documentário que tira o pó da violência praticada na ditadura. O ex-delegado Cláudio Guerra confessa em entrevista o assassinato e incineração de corpos de militantes da esquerda na época da ditadura.

Para Sidoti, filme como o seu e o de Beth são essenciais para a preservação da memória. "Trazem memória e consciência. Acho que abrem um pouco a reflexão e o debate e isso nunca é demais porque violência e barbárie não faltam no mundo".