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Ney Matogrosso critica conservadorismo: "Daqui a pouco, vamos ter Aiatolá"

Ney Matogrosso e Roberto Alencar vivem um casal em "Ralé", de Helena Ignez - Reprodução
Ney Matogrosso e Roberto Alencar vivem um casal em "Ralé", de Helena Ignez Imagem: Reprodução

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

06/10/2015 10h50

Em sua terceira parceria com a cineasta Helena Ignez, Ney Matogrosso aposta que seu novo filme vai chocar a plateia mais conservadora. Experimental e filosófico, “Ralé” estreia no Festival do Rio na quarta-feira (7), como uma resposta ao avanço de pautas conservadoras no Congresso Nacional, em especial a definição de entidade familiar como "união entre um homem e uma mulher". “É um retrocesso absoluto”, reclama Ney. “Daqui a pouquinho, vamos ter um Aiatolá”.

Em paralelo com a turnê “Atento aos Sinais” (que deve dar espaço em breve para um novo espetáculo, em parceria com o ator Jesuíta Barbosa), o cantor vem se sentindo cada vez mais confortável com o trabalho no cinema.

Culpa da cineasta, que tem o hábito de ouvir histórias de Ney e inseri-las no contexto dos personagens. Assim, Ney se aproxima tanto de um assaltante, como o Luz Vermelha em “Luz nas Trevas” (2010), quanto de um guru de uma seita do Santo Daime, no média-metragem “O Poder dos Afetos” (2013), que se desmembra agora em “Ralé”. Ney, assim como seu personagem, viveu mais de um ano como adepto do ritual.

Mas há algo em seu personagem que não conversa com seu íntimo. “A única coisa que eu não sou capaz de fazer é casar com um homem. Nem passa pela minha cabeça, Deus me livre”. No filme, ele se casa com um bailarino vivido por Roberto Alencar.

Existe também outro papel que Ney se recusa a fazer, o de frontman do Queen. Após ver seu figurino rocker virar assunto nas redes sociais, durante rápida aparição no primeiro dia do Rock in Rio, e ficar sabendo que o cantor Adam Lambert “pirou” em um disco do Secos e Molhados, um grupo de fãs encabeçou uma campanha no Facebook: “Eu Quero o Ney Matogrosso no Queen”. É uma brincadeira, ele sabe disso, mas, mesmo assim, Ney manda o recado: “Parem de viajar”.

18.set.2015 - Ney Matogrosso usa figurino rocker, com direito a acessório conhecido como suporte atlético e camiseta rasgada. O cantor se apresentou ao lado de Frejat, abrindo o show especial que comemora os 30 anos do festival Rock in Rio. - Ide Gomes / Frame  - Ide Gomes / Frame 
18.set.2015 - Ney Matogrosso usa figurino rocker em show especial aos 30 anos do festival Rock in Rio
Imagem: Ide Gomes / Frame 

UOL - “Ralé” é seu terceiro filme com Helena Ignez, que conseguiu aproximar você do bandido da luz vermelha em “Luz nas Trevas” (2010). É uma parceria que funciona na troca de experiências?
Ney Matogrosso - Eu também acho isso. Ela sempre pede para eu fazer coisas que um dia eu já fiz. Acho engraçado, meus personagens sempre têm uma coisa da minha vida, algo que eu contei para ela em algum momento e que ela usa. Não acho ruim, porque está em outro contexto. Ela me pede porque sabe que eu faço, que sou capaz de fazer.

No filme, você é uma espécie de líder de uma seita que se casa com um bailarino.
Uma seita de [Santo] Daime. Olha a loucura dela! (risos)

O que tem de seu nesse personagem?
Eu tomei Daime durante um ano e meio. A única coisa que eu não sou capaz de fazer [que está no filme] é me casar com um homem (risos). Nem passa pela minha cabeça, Deus me livre.

Por quê?
Não é a minha. Eu não tenho essa necessidade. Eu acho que você pode dividir tudo com alguém, mas não precisa casar.

O filme segue o experimentalismo dos trabalhos anteriores?
Quando acabou a filmagem, eu falei: ‘Olha Helena, eu não tenho noção para quem vai ser a censura desse filme, provavelmente vai ser 21 anos’. Ela é muito anárquica, o pensamento dela é anárquico. Junta a fome com a vontade de comer, eu e ela, tudo que ela pede de loucura, eu faço. Acho que é um filme muito compatível com o Brasil de hoje. É muito crítico.

Em um momento em que pautas conservadoras avançam no Congresso?
Pois é, é um retrocesso absoluto. Daqui a pouquinho, vamos ter um Aiatolá. É um atraso mental. Claro, porque permitiram que esse tipo de pensamento religioso estivesse dentro do Congresso Brasileiro. Somos um país laico, isso não pode acontecer. A história caminha, não é isso? Como a história não é só feita de avanços, tem retrocessos também, a minha esperança é de que em algum momento destrave isso e realmente a gente viva em um país civilizado, com todos os direitos respeitados. Todos.

Acha que vai chocar a plateia mais conservadora?
Acho que vai. Eu tenho um filho que é adolescente, e Helena me bota o tempo todo me abraçando, me agarrando com esse menino. Sabe por quê? Por causa daquela história do pai que apanhou por estar abraçado com um filho, no interior de São Paulo. É uma provocação que eu acho positiva. É meu filho, nada além de meu filho. Eu posso beijá-lo e abraçá-lo quantas vezes eu quiser.
 

Em "Ralé", Ney Matogrosso retoma parceria com a cineasta Helena Ignez - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação
Daqui a pouquinho, vamos ter um Aiatolá. É um atraso mental. Claro, porque permitiram que esse tipo de pensamento religioso estivesse dentro do Congresso Brasileiro. Somos um país laico, isso não pode acontecer
Ney Matogrosso


Você parece estar cada vez mais confortável com a carreira no cinema? Existem outros projetos?
Acabei de fazer uma participação em um filme, “Na Curva do Rio Sujo”, do Felipe Bragança. Ele fez um filme cujo protagonista é o Cauã Reymond. Inicialmente, eu seria o capanga do Cauã, mas quando cheguei lá passei a ser o capanga do pai do Cauã, que levava o Cauã para ser assassinado. Fiquei muito triste (risos).

Seu show “Atento aos Sinais” está ainda na estrada, mas há outros projetos em andamento para o palco?
Eu já estou começando outro trabalho, a ser dirigido pela cineasta Ana Carolina [com quem Ney fez sua estreia no cinema em 1987, no filme “Sonho de Valsa”], que ela me propôs. Seria eu e o Jesuíta Barbosa. São poemas do Gonçalves Dias, com música de Carlos Gomes e  Villa-Lobos. Mas não é estanque, ele lá, eu cá. Ele fala, eu vocalizo, eu canto, ele canta junto. Tem um nome, não muito definitivo, “O Cantor e o Poeta”, mas pode não ser esse. Estou muito excitado. Eu já tinha um repertório pop, pronto para gravar, mas eu não estava querendo, sabe? Quando a Ana me convidou, eu senti que era isso que eu tinha que seguir.

Sua participação no Rock in Rio foi rápida, mas sua roupa foi um dos destaques do primeiro dia do festival nas redes sociais.
Ué, é Rock in Rio. Não é isso? (risos). Você acha que eu ia fazer por menos?

Escolheu a dedo?
Claro. Eu fiz o modelito para o Rock in Rio. Por exemplo, aquela jaqueta era de um figurino que eu nunca usei, porque era de inverno. Aí eu abro e estou com aquela camisetinha safada, de uma alcinha que está rasgando, quase caindo do corpo. E aquela calça, pô. Linda, brilhosa, parece que eu sou de aço.

A calça, em particular, foi um sucesso.
Eu sei (risos). Eu fico sabendo, as pessoas me falam.

Um grupo de fãs chegou até mesmo a fazer uma campanha no Facebook pedindo que você assuma a posição de vocalista do Queen. O que tem a dizer às pessoas que gostariam de lhe ver nesse papel?
Parem de viajar. Isso é bobagem, eu nem considero.

Serviço:
Festival do Rio: "Ralé", de Helena Ignez
Quarta, 7/10 - 21h30 - Cinepolis Lagoon 6
Quinta, 8/10 - 16h45 - C.C. Justiça Federal 1
Sexta, 9/10 - 16h - CCBB - Cinema 1