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Filme espanhol "Terra de Maria" inaugura cinema religioso fofo

Ricardo Feltrin

Colunista do UOL

16/10/2015 16h19

Em cartaz em apenas uns poucos cinemas e em dias e horários aleatórios, "Terra de Maria" é um filme que causa estranheza desde o início.

Dedicado sob medida a fiéis católicos, o filme espanhol aborda transformações pessoais e de supostas curas milagrosas atribuídas à fé em Nossa Senhora.

Mas, diferentemente de outras histórias com viés religioso-proselitista, como "O Segredo", "O Céu É de Verdade" e o recente "Você Acredita?" (Com Lee Majors e Cybill Shepperd), "Terra de Maria" ironiza a si próprio, sua linguagem e seus personagens.

Nos primeiros minutos, é preciso dizer, a impressão do telespectador comum (não o crédulo) é de que estamos diante de um filme tosco, interpretado por atores fracos, sem preocupações com enquadramento e muito menos com fotografia.

Em pouco tempo, porém, o público começa a perceber o suave deboche do diretor Juan Maria Costelo, que se materializa em seus personagens: eles não hesitam em rir de si próprios e ri do próprio filme.

Há uma curiosa metalinguagem que tem o objetivo de transformar o público em cúmplice, e a verdade é que isso acaba ocorrendo cedo ou tarde. Sem trocadilho, mas parece milagre.

O forte de "Terra de Maria", no entanto, não é sua premissa --um advogado contatado por uma misteriosa personagem para fazer o papel de defensor do diabo e checar seu verdadeiro papel na Terra, a partir da expulsão de Adão e Eva do Paraíso. Não é isso que estimula comprar o ingresso.

O filme inteiro vale por seus momentos documentais, ou os depoimentos de pessoas comuns que, em algum momento, tiveram suas vidas transformadas completamente por uma experiência mística --seja pela visão ou ou pela sensação de presença e comunicação com a Virgem Maria.

Uma top model colombiana, uma pin-up de Las Vegas que hoje sofre de esclerose múltipla, um médico especializado em aborto que mudou de vida, um fisioterapeuta que passa noites distribuindo imagens de Nossa Senhora em bordeis, ou uma garota que sofria de paralisia e afirma que foi curada durante peregrinação à cidade santa de Medjugorie, na Bósnia, são alguns deles.

Lendo essa lista, parece até um festival de clichês proselitistas, mas acontece que está longe disso.

Os depoimentos são simplesmente arrebatadores, assombrosos até. Alguns deles têm o poder de causar lágrimas ou comoção até ao mais frio e insensível dos espectadores.

A maior qualidade desses depoimentos é que eles não transmitem em nenhum momento uma fé cega, mas sim uma profunda e definitiva mudança de vida (e de alma) baseada em algum tipo de experiência que não pode ser descrita em palavras. Ou melhor, pode. É isso que o filme faz.

Em plena era tecnológica e egocêntrica como a atual, não deixa de ser engraçado ver o advogado do diabo, após entrevistar a top model, se desdobrar porque quer fazer uma "selfie" com ela.

São detalhes grandes e pequenos que fazem valer a pena "caçar" as poucas salas que estão exibindo os 111 minutos de "Terra de Maria", que inaugura um novo modelo de cinema: o cinema religioso fofo.