"É o filme que a morte me deixou fazer", diz Babenco sobre Meu Amigo Hindu
Vestindo bermuda e agasalho verde-musgo, o cineasta Hector Babenco dá de ombros para um saariano calor de 38 graus ao receber a reportagem do UOL na tarde desta terça (20), na sede de sua produtora HB Filmes, zona sul da capital paulista.
"Desde que fiz o transplante de medula, minha sensação térmica mudou. As pessoas sentem muito calor, e eu não. E, quando sentem frio, eu sinto menos. Nunca comentei isso com nenhum médico. É uma curiosidade", diz o argentino naturalizado brasileiro, referindo-se a um linfoma vencido nos anos 1990.
As cicatrizes do câncer, no entanto, são mais evidentes. No novo "Meu Amigo Hindu", primeiro longa do diretor de "Carandiru" em oito anos, Babenco decidiu contar a história de um cineasta (Willem Dafoe) diagnosticado com uma doença grave que, perto do iminente fim, aproxima-se de um garoto indiano (veja acima trailer divulgado em primeira mão pelo UOL).
Hoje, depois de ser muito assediado pela ideia de fim, meu único pedido à morte era que ela me deixasse fazer mais um filme. E esse é o filme que a morte me deixou fazer.
Hector Babenco, sobre "Meu Amigo Hindu"
Autobiográfico ("mas não é minha vida, detesto biografias"), o longa foi escolhido para abrir a 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que começa nesta quinta (22). Mas tal honraria não significa "porra nenhuma" nas exatas palavras do diretor, dono de sinceridade ímpar —a ponto de criticar o aperto de mão do "mole demais" do repórter. Ele mesmo admite que pode ser uma das últimas.
Seu próximo projeto, que levará o título de "Cidade Maravilhosa" e não tem previsão de lançamento, deve marcar o fim de uma carreira de mais 40 anos. O motivo: ter um projeto aprovado em editais de cinema anda sendo cada vez mais difícil. Mesmo para alguém com o rótulo "Hector Babenco", indicado ao Oscar por "O Beijo da Mulher Aranha" (1986).
"Não aguento mais. Estou de saco cheio de tudo isso."
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
UOL - Como nasceu "Meu Amigo Hindu"?
Hector Babenco - [Longa pausa] Boa pergunta. Começou quando fui ao cinema pela primeira vez, aos sete anos. Vi a cena de uma mulher correndo na areia. Perseguida por um carro conversível, por meninos que bebiam e gritavam. No fim, ela caía de cansaço, e os meninos saíam do carro. Eu olhei para o lado e vi que meus amigos estavam todos eclipsados. E, depois, me lembro que eles estavam no banheiro lavando as mãos.
Durante aquele filme, que nem lembro o nome, senti pela primeira vez o despertar da minha sexualidade. E sempre associei meu desejo de fazer cinema a uma procura que tem a ver com o lado erótico, com a libido. Digo apenas que começou lá. Um garoto que gostou de um filme e que a vida inteira nunca descobriu uma paixão maior. Hoje, depois de ser muito assediado pela ideia de fim, meu único pedido à morte era que ela me deixasse fazer mais um filme. E esse é o filme que a morte me deixou fazer.
Mas de onde veio a figura do menino?
É uma invenção minha. Acho que cheguei a ver um dia um menino hindu sentado numa sala. O filme pode ser lido como um diário imaginário entre um adulto, que seria eu, meu alter ego, e uma figura que eu inventei. Escolhi uma figura exótica, distante. Alheia à nossa cultura. Mas isso não foi de propósito. Simplesmente aconteceu. A ideia de fazer essas transferências se transformou num jogo para mim. E eu comecei a contar a ele o que eu estava sentindo naquele momento, e, depois, a me questionar se ele ainda estava vivo, se construiu um relato.
É um filme que tem elementos pessoais. Mas isso não quer dizer que minha vida tenha sido desse jeito. Detesto biografias. Acho chatas. Nunca me interessaram as vidas dos grandes homens.
Hector Babenco, sobre "Meu Amigo Hindu"
Onde o filme começa e deixa de ser autobiográfico?
É um filme que tem elementos pessoais. Mas isso não quer dizer que minha vida tenha sido desse jeito. Detesto biografias. Todo autor tem um pouco dele em tudo que conta e cria. Pode ser um pouco mais ou menos. No meu caso, digamos que eu manipulei malandramente alguma coisa que me aconteceu, com algumas pessoas que estiveram em minha vida. Construí um personagem que sou eu e não sou eu. Você não passa impunemente pelo que acontece com você. É óbvio que cicatrizes ficam. Não no corpo, mas na alma.
Por que não gosta de biografias?
Acho chatas. Nunca me interessaram as vidas dos grandes homens. Nem o Churchill, Mao Tsé-Tung, Cervantes, Shakespeare. Deixe eu me divertir com um espetáculo do Shakespeare e entender por que se fala dele através do que ele fez, não através de onde ele nasceu, como cresceu. Sabe? Acho isso chato.
Como se sente tendo um filme na abertura da Mostra de SP?
Não estou alegre nem feliz. Acho que é um momento sagrado, em que o filme que foi um sonho durante dois anos vai encontrar o mundo real. É um filme que me deixou tão feliz de fazer. Eu me sinto tão confortável dentro dele. Com o espaço interno criado. Com ele pronto. Isso pode até parecer meio vaidoso, mas "caguei". Não devo nada a ninguém.
Você já foi homenageado recentemente no Festival de Paulínia, pela Cinemateca e agora pela Mostra. O que isso representa para você?
Porra nenhuma.
É a tragédia de não poder filmar no Brasil. De ser rejeitado por editais. Não conseguir recursos para fazer cinema. A possibilidade de trabalhar com recursos privados esmoreceu.
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Oportunismo da parte deles?
Oportunismo é uma palavra feia. Oportunismo de quem?
Mas você já criticou a Cinemateca quando ela produziu uma mostra com seus filmes sem autorização.
Mas eu tive de criticar. Eu simplesmente alertei que alguém estava fazendo algo indevido. Eles fizeram apropriação indébita. Só isso. Vou matar, sair por aí com revólver? Não. Eles que se cuidem, cara. Eles têm as responsabilidades deles e eu tenho as minhas.
Por que passou oito anos sem lançar filmes?
É a tragédia de não poder filmar no Brasil. De ser rejeitado por editais. Não conseguir recursos para fazer cinema. A possibilidade de trabalhar com recursos privados esmoreceu. O cinema não é uma indústria aqui, aquela que dá retorno, considerando nossos modelos de produção.
Você já filmou nos Estados Unidos, em produções independentes, mas já disse que seu estilo não cabe em Hollywood. Por quê?
Isso foi dito a mim pelo próprio presidente da Fox. Eu estava na lista dos 20 diretores potencialmente cotados para fazer projetos da empresa. Mas havia um "senão" que era difícil.
Esse é o meu último filme que eu produzo. Depois, nunca mais. Não aguento mais. Estou de saco cheio de tudo isso.
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O que não bate? O lado comercial?
Não. É a diferença que há entre anglo-saxão e nós. Eles têm o "não" como a primeira palavra, e nós temos o "sim". Eles dizem não a tudo e, depois, se for o caso, cedem. Nós falamos "sim" e não cumprimos. Você combina de ir à casa de alguém, mas ninguém passa lá. Nos Estados Unidos, se alguém diz que a festa é às 2h da tarde, e você chega às 2h30, você não entra. São culturas diferentes. Se uma melhor é que a outra? Não sei.
Você tem o projeto de um novo filme, sobre o Rio, chamado "Cidade Maravilhosa". Em que pé está?
Está parado. De vez em quando a faxineira passa um paninho e tira o pó de cima dele (risos). O que falta? Falta grana. Sem recursos, eu não consigo filmar. Esse é o meu último filme que eu produzo. Depois, nunca mais.
Por quê?
Não aguento mais. Estou de saco cheio de tudo isso.
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