Para Carell, "A Grande Aposta" tenta criar conversa política com o público
“A Grande Aposta” não é um filme em cima do muro. O diretor Adam McKay adaptou para o cinema a grande reportagem de Michael Lewis - “A Jogada do Século” (Editora Record) - com assumido viés ideológico. O perfil de quatro ases do mercado financeiro pioneiros em perceber, ainda em 2006, o tamanho da bolha imobiliária americana e o quanto sua inevitável explosão iria abalar os alicerces da maior economia do planeta é contado com a ira de quem assistiu a seus pais verem o sonho da casa própria se transformar em um pesadelo.
A dor real de McKay serviu de guia para uma história tão abertamente esquerdista quanto divertida. Como enfatiza ao UOL um dos protagonistas, Ryan Gosling, “o diretor não deixou que sua indignação o cegasse, ele detectou o absurdo e o ridículo de Wall Street, e a levou para tela”.
Steve Carrel, outro personagem central do filme, concorda que o diretor não se deixou levar pelo partidarismo. "Não acho que ele é partidário, a fraude afetou todo mundo, com efeitos à direita e à esquerda", diz. "Ele procura criar uma conversa política com o público. Mas é só um filme, né, gente?".
Ou não: o longa teve cinco indicações ao Oscar - filme, direção, ator coadjuvante (Christian Bale), roteiro adaptado e montagem. O Sindicato dos Atores dos EUA também indicou Bale, individualmente, e todo o elenco como os melhores do ano.
A Wall Street de McKay, 47, conhecido pelas parcerias com Will Ferrell em títulos do besteirol, como “Quase Irmãos”, “Os Outros Caras” e os dois “O Âncora”, passa longe da glamourização vista em “O Lobo de Wall Street”, de Martin Scorsese, ou do frenesi oitocentista de “Wall Street - Poder e Cobiça”, o hoje clássico de Oliver Stone. Seus protagonistas não carecem de excentricidade, mas as obsessões são as de se provarem corretos e as de enriquecerem seus clientes, objetivo final das horas gastas no escritório.
Quem guia o espectador pelos anos pré-crise, quando todos os especialistas em finanças da vida real - incluindo as cabeças coroadas da Casa Branca - ridicularizavam-nos, são justamente os personagens de Carell e de Gosling.
Não por acaso eles tiveram os nomes alterados em relação aos seres de carne e osso que os inspiraram. Gosling é Jared Vennett, Greg Lippman na vida real, um arrojado executivo do Deutsche Bank apelidado à época por seus detratores de "garoto da bolha", por motivos óbvios. Foi Lippman, com sua propensão ao sarcasmo, quem deu a Gosling a dimensão surrealista da história. Cabe ao ator quebrar a quarta parede e conversar diretamente com o espectador, apontando os aspectos mais insanos do bacanal financeiro da segunda metade da década passada.
“O Adam (McKay) fez um filme indignado sem perder o senso de humor", diz Gosling. "Ao contrário de outros filmes sobre Wall Street, não há qualquer celebração aqui, o filme é assumidamente não glamouroso, não quer retratar aquele universo como algo sexy, basta olhar para os cabelos dos personagens, o do meu especialmente".
Gosling lembra que não foram os quatro especialistas em finanças retratados no filme que criaram as condições para a crise. “Eles foram os visionários que perceberam a maracutaia toda e lucraram por ter a capacidade de prever a derrocada. Eles não guardaram a informação em segredo. Foram até criticados e vistos como lunáticos, mas diziam o tempo todo: ‘esta bolha vai explodir, salve-se enquanto você pode’".
Se Gosling vive em “A Grande Aposta” o mais arrojado dos futurologistas de Wall Street, o Steve Eisman de Steve Carrell, na tela renomeado como Mark Baum, é a voz da experiência, o oposto exato do personagem de Gosling. Veterano administrador de fundo de investimentos, ele está no olho do furacão do sistema bancário, em uma unidade do gigante Morgan Stanley.
Sua decisão final é o clímax de um filme apocalíptico cuja informação mais preciosa é dada no fim da projeção: a de que mesmo depois dos milhares de desempregados e de causar a maior recessão da história do mundo ocidental desde 1929 o sistema financeiro é, em 2015, um xerox do que assombrou o mundo em 2007.
"Vai ser positivo se as pessoas decidirem tratar destes temas, do que causou a crise, de entender os mecanismos que nos levaram a um desastre tão grande", diz o ator. "Mas vai mudar algo? Sei lá. Não tenho a menor ideia. Colocar o tema de volta na pauta já é ótimo", conclui.
Confira a seguir os melhores momentos da conversa do UOL com Carell, personagem central da tragicomédia mais sofisticada da safra do Oscar 2016.
UOL - O filme é assumidamente esquerdista. A revista “New York”, em uma extensa reportagem de capa, o classifica de o “Ocupem Wall Street” de Hollywood. Eles estão certos?
Steve Carell - Huuum, sim, né? (risos). O Adam (McKay) certamente ficou feliz com a comparação. Mas não acho que ele é partidário, a fraude afetou todo mundo, e vem sim de uma sensação de raiva, de indignação, mas com efeitos à direita e à esquerda. Quando li o roteiro pela primeira vez, antes mesmo de ler o livro, ele me disse que era muito denso e complicado, mas queria que fosse acessível sem virar tatibitate. E ele fez isso. Ele procura criar uma conversa política com o público. Mas é só um filme, né, gente? Não quero ser pretensioso sobre o tamanho do filme, seu impacto cultural ou social.
Você chegou a pensar duas vezes se de fato seria possível encarnar um personagem tão central para a história e tão mergulhado no mundo das finanças?
Não entendo nada do mundo dos bancos. Nunca havia me interessado por aquilo. Mas o que mais me assustou foi conhecer Steve Eisman e perceber o quão brilhante ele era. Ele começa a falar sobre o sistema financeiro global e você se perde em três minutos. Mas tentei fazer meu dever de casa e estar pronto para pelo menos entender o que eu dizia. Christian Bale brincava comigo o tempo todo que um mês depois de terminarmos as filmagens não teríamos mais a menor ideia do que um efeito colateral em ações de risco seria. Bem, ele estava certo (risos). Foi muita informação para digerir em pouco tempo. O que mais me deixa impressionado com a direção do filme é justamente ultrapassar o jargão do economês e focar no que estes personagens de fato queriam fazer. É meio como assistir a um filme estrangeiro sem legendas mas que você ainda entende o sentido da coisa.
Você se preocupa com a conversa sobre indicações ao Oscar?
Ano passado fiquei surpreso com a indicação por “Foxcatcher: Uma História que Chocou o Mundo”, mas vi aquilo como um momento. Um instante na minha vida. Não é um objetivo. O que quero é seguir fazendo coisas interessantes e que sejam vistas pelo público.
E com relevância cultural como “A Grande Aposta”...
Ah, já vejo as pessoas lendo e falando: “lá vai Steve Carell, o ator pretensioso”. Olha, vai ser positivo se as pessoas decidirem tratar destes temas, do que causou a crise, de entender os mecanismos que nos levaram a um desastre tão grande. Mas vai mudar algo? Sei lá. Não tenho a menor ideia. Colocar o tema de volta na pauta já é ótimo.
Mas é mais do que isso, não?
Huuum, tendo a achar que McKay não diz ao espectador como ele deve pensar sobre o tema. Por isso o uso da comédia e de cenas de um humor absurdo. Os fatos são apresentados, mas não há uma condução da narrativa de forma descarada.
E por que os protagonistas não romperam com Wall Street antes do debacle?
Eles o denunciaram, em vários níveis. Mas lucrar, e lucrar para os clientes, era o trabalho deles. A questão moral central de meu personagem, se deve ou não, pessoalmente, lucrar com aquilo, é parte do desafio ético do filme. Lembro que em uma das projeções de teste uma pessoa falou, claramente irritada, na sessão de perguntas e respostas: “ah, mas pera lá, vocês querem que eu simpatize com estes caras? Vocês querem que eles sejam os heróis desta história?”.
Quem são os heróis de “A Grande Aposta”?
O Adam deu uma bela resposta: eles não são heróis, apenas estão fazendo seu trabalho, neste caso, ir contra o interesse dos bancos e da economia americana. Claro, o sucesso deles será a derrocada de todo o resto, esta é a singularidade da vitória dos quatro. Por isso a dor de cabeça de meu personagem, que está longe de ser uma pessoa altruísta, mas é capaz de entender a tristeza daquele momento. Mas, olha, eles pelo menos queriam saber a verdade por detrás da bolha imobiliária. Steve Eisman se vê, creio, como alguém que lutou contra o sistema financeiro tal qual ele agia naquele momento.
Você é conhecido por improvisar diálogos com perícia. Foi possível fazer isso em “A Grande Aposta”?
Foi complicadíssimo. E Adam nos incentivava. O Ryan (Gosling) é engraçado de verdade e pôde fazer mais com a quebra da quarta parede, mas para nós foi mais complicado. E Ryan, que pegou o mais sarcástico dos personagens, é, ironicamente, um doce no set, a pessoa mais delicada e querida que você pode imaginar. Só quero trabalhar agora com ele, fiquei muito mal acostumado (risos).
Adam McKay é celebrado por comédias mais próximas do besteirol. Você se surpreendeu quando ele o convidou para fazer o líder dos protagonistas de um filme sobre a explosão da bolha imobiliária?
Definitivamente não por ter vindo dele o convite. O conheço desde os anos 1990 e sei que ele é profundamente interessado em temas políticos e econômicos. O público talvez ache um pouco estranho, mas ele é um intelectual, um apaixonado pelos temas que lhe são caros, e um fã do absurdismo que povoa “A Grande Aposta”. Este filme não podia ser dirigido por alguém pouco familiar com o surrealismo tão característico daquele ambiente naquele momento.
Como é que você vai convencer seus amigos a ir ao cinema ver este filme? A comédia sobre a crise?
Ou Margot Robbie explicando o sistema financeiro enquanto toma um banho de banheira (lembrando uma das cenas mais engraçadas e sexys do filme) (risos)? Olha, é um filme que é engraçado, divertido, tem Christian Bale atuando em uma performance maravilhosa, Brad Pitt em uma cena que define o filme, e um tema que pode até ser puxado para o público, mas que se revela, no fim, simples. Você poderá ficar arrasado no fim, mas de uma maneira inteligente, irado com o que se passou nos escritórios de Wall Street.
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