Topo

Desumanização das redes sociais me chama atenção, diz Charlie Kaufman

Eduardo Graça

Colaboração para o UOL, em Nova York (EUA)

28/01/2016 06h00

Em “Anomalisa”, que chega nesta quinta (28) aos cinemas brasileiros, o artista responsável por alguns dos mais intrincados roteiros do cinema americano contemporâneo – pense em “Quero Ser John Malkovich” (1999), “Adaptação” (2002) e “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” (2004) – se debruça sobre as dificuldades de comunicação de nossos tempos. E em um filme de animação em stop motion, cuja primeira encarnação foi uma espécie de peça radiofônica.

"O que mais me chama a atenção é a desumanização promovida pelas redes sociais, que oferecem a possibilidade de você compartimentalizar o outro", explica Charlie Kaufman, em entrevista ao UOL. "Ele passa a ser não mais uma pessoa, com sentimentos complexos, mas a representação de um comentário". 

Este é apenas o segundo filme dirigido pelo roteirista - que estreou na direção com “Sinédoque, Nova York”, lá se vão oito anos -, desta vez em parceria com o estreante Duke Johnson.

“Não está sendo fácil produzir meus filmes em Hollywood hoje em dia”, diz Kaufman. Recebido com entusiasmo pela crítica no Festival de Cinema de Veneza 2015, “Anomalisa” só saiu do papel depois de uma campanha de financiamento coletivo através do site Kickstarter. A distribuição, pela Paramount, só foi assegurada mais tarde, com a repetição do sucesso do filme, desta vez no Festival de Toronto.

Indicado para o Oscar de melhor longa de animação, “Anomalisa” segue o britânico Michael Stone, um sujeito de meia-idade com um bom emprego, reverenciado por seus pares e com todos os motivos para celebrar o sucesso de seu livro, um guia para o setor de serviços que “ajudará a aumentar a produtividade de seu negócio em 99%”. Mas ao chegar a um hotel em Cincinnati, Ohio, no coração da "América Profunda", a sub-celebridade se dá conta do tamanho de sua solidão e da relação árida com mulher e filho, em casa, na agora distante Los Angeles.

O acaso, e seu desejo de encontrar uma voz original, diferente de todas as outras que poluem sua mente com a repetição infinita de "tins" e "tons" e "tais", acaba oferecendo a Michael um encontro nada esperado com Lisa, a anômala Lisa, Anomalisa. Em um só tempo delicado, duro, romântico, existencialista e melancólico, o filme ainda oferece um agrado inusitado aos brasileiros: o apelido dado à personagem, cuja voz é da excelente Jennifer Jason Leigh – indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante este ano por “Os Oito Odiados”, de Quentin Tarantino – nasce de uma reflexão de Michael e Lisa, na cama do hotel, acerca das anomalias do planeta. Na lista de Lisa aparece o Brasil, único país em que se fala português na América Latina. “Adoro cantoras brasileiras. Adoro português”, ela diz.

Kaufman - Kevork Djansezian/Getty Images - Kevork Djansezian/Getty Images
O roteirista e diretor Charlie Kaufman
Imagem: Kevork Djansezian/Getty Images

É de Jason Leigh um dos momentos mais intimistas de uma animação que trata da busca pela intimidade em um cenário – nosso admirável mundo novo – recheado por emoções rasteiras e prazeres fugidios. Seu personagem canta, em inglês e italiano, o clássico de Cindy Lauper “Girls Just Wanna Have Fun”, e o quarto de hotel se transforma metaforicamente no coração de Stone, que ouve Lisa em estado de êxtase.

O nome do hotel em que a maior parte da ação se dá, Fregoli, é uma referência ao termo clínico usado para pacientes que acreditam estar cercados por pessoas usando disfarces, interessadas em não revelarem quem de fato são. Prato cheio para o roteirista.

O UOL conversou com Charlie Kaufman sobre a singular aventura de “Anomalisa” e sua trajetória em Hollywood. Leia os melhores trechos a seguir.

UOL - É verdade que o senhor demorou a ser convencido de que “Anomalisa” funcionaria bem no cinema? O senhor receava que o formato em animação stop motion não registrasse com precisão as nuances da peça?
Charlie Kaufman -
É que “Anomalisa” já foi um projeto pensado, por uma série de motivos, para existir fora do cinema. Foi feito para acontecer no palco, com o uso das vozes de atores, e imagens criadas por mim. Apenas três vozes, como no filme. David Thewlis (o professor Lupin de “Harry Potter”) faz a de Michael Stone. Jennifer e o diretor e ator Tom Noonan, que também fizeram comigo “Sinédoque, Nova York”, criam, respectivamente, as de Lisa e as de todos os outros personagens, masculinos e femininos. A ideia, no teatro, para mim, era a de que a peça acontecia, de fato, na mente dos espectadores. Isso seria impossível no cinema. Mais do que o formato, eu sabia que teria de abandonar todas as características que faziam de “Anomalisa” uma espécie de “peça radiofônica para os dias de hoje”, e isso, no início, me deu calafrios. Não sabia aonde esta nova versão de “Anomalisa” iria parar. Mas assim que descobri o que seria esta nova reencarnação de minha história, comecei a correr atrás de dinheiro.

O senhor produziu a maior parte de seus trabalhos mais festejados por crítica e público na virada do século. Ficou mais complicado para o senhor fazer cinema na Hollywood da era dos filmes milionários de super-heróis?
Sim, sem dúvida. Hoje não é fácil para mim convencer alguém a financiar um filme meu. Tive enorme dificuldade para tirar do papel meus projetos mais recentes (entre eles a série televisiva “How and Why”, sem título em português, que jamais foi comprada pelos canais americanos). E quando os produtores de “Anomalisa” resolveram apostar no Kickstarter, resolvi ver o que aconteceria. Ajudou muito ver o entusiasmo das pessoas que transformaram o filme em uma ‘causa’ e acabaram chamando a atenção de possíveis financiadores. (“Anomalisa” conseguiu angariar US$ 400 mil no site e o filme acabou custando algo em torno de US$ 10 milhões).

Em uma conversa recente com o jornal inglês “Guardian”, o senhor se dizia preocupado com a sensação de ‘alienação’ contemporânea, em que as pessoas se relacionam cada vez mais nas redes sociais e menos ao vivo. Este é, não por acaso, um dos temas de “Anomalisa”...
Sim, um dos meus projetos que não teve financiamento (risos) tratava ainda mais diretamente desta questão, “Frank or Francis” (o meta-musical, centrado em Hollywood e na relação de um diretor pretensioso com um aspirante atrevido do universo da internet, contava no elenco com Jack Black, Nicholas Cage, Elizabeth Banks, Kevin Kline e Catherine Keener). Ali, a raiva da internet, do mundo anônimo digital, estava no centro da história. Meu interesse é grande por esta sensação de indignação e de raiva, mesmo, que as pessoas hoje consideram ser ok se expressar on-line. O que mais me chama a atenção é a desumanização promovida pelas redes sociais, que oferecem a possibilidade de você compartimentalizar o outro. Ele passa a ser não mais uma pessoa, com sentimentos complexos, experiências reais das mais diversas, muitas vezes contraditórias, mas a representação de um comentário, uma ideia, um conceito. A desumanização de pessoas com o intuito de destruí-las tem raízes históricas, é claro, as vemos na propaganda das guerras. Mas agora o que me assombra é a quantidade de nosso tempo consumida neste mundo virtual que está tomando nossa cultura de assalto e traz, embutido, este sinal verde para a caracterização reducionista do outro.

E aí um filme como “Anomalisa” faz críticos escreverem sobre Michael e Lisa, personagens que parecem mais reais do que os representados por atores de carne e osso em boa parte dos filmes produzidos hoje em Hollywood. O senhor ficou satisfeito com esta interpretação de seu filme?
Sinceramente, não sei. Ouvimos muito isso das pessoas. É interessante que as pessoas possam se identificar tanto, neste momento, com estes bonecos, seres não-vivos, controlados por nós. A cena de sexo entre os dois protagonistas no quarto de hotel, por exemplo, deu o que falar. Todos acham que foi extremamente realista e ouvi mesmo de pessoas “foi a cena de sexo mais sexy e próxima da realidade que vi no cinema”. Acho interessante esta empatia de críticos e público a personagens fisicamente distantes do modelo de estrelas de Hollywood. Eles são propositadamente imperfeitos. Ordinários. Humanos. Exatamente como nós. E, no entanto, sei o quão mais difícil seria conseguir financiamento para filmar uma cena com dois humanos de verdade, sem o corpo da maioria dos atores e atrizes do cinema americano. Ainda bem que com bonecos a gente ainda pode.

Qual foi a maior surpresa no processo de adaptação de "Anomalisa" para o cinema?
O processo. Ver como os animadores trabalham, e foram mais de vinte profissionais indo e vindo nestes anos todos. Como eles criam os bonecos, como eles os movimentam, como eles desafiam a gravidade para fazer aquilo tudo parecer real. Foi muito educativo para mim (risos).