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Fiel à tradição "engajada", Festival de Berlim acena a refugiados na Europa

Bruno Ghetti

Colaboração para o UOL, em Berlim

11/02/2016 07h00

A política promete ser a grande tônica do 66º Festival de Cinema de Berlim, que começa nesta quinta-feira (11). O evento terá uma programação repleta de filmes engajados e focados em temas atuais, mas a questão será percebida e vivenciada também com força do lado de fora das telas e salas de exibição. O terrorismo e o drama dos refugiados na Europa serão pautas importantes das discussões, nos próximos 11 dias, nos arredores do Berlinale Palast, o Palácio do Festival.

Não poderia ser diferente: Berlim será o primeiro festival europeu de grande apelo midiático desde os últimos atentados terroristas de Paris, em novembro do ano passado. O próprio Palácio poderia ser um prato cheio para ataques, pois, além de a região concentrar um grande número de profissionais da mídia e da indústria cinematográfica, há um grande fluxo de moradores da capital alemã que prestigiam as sessões abertas ao público. Sem contar as grandes estrelas, que vão passar diariamente por um tapete vermelho a céu aberto na porta do prédio.

O clima da Berlinale não deve ser de paranoia ou pânico, mas a organização do evento tomou precauções de segurança mais rígidas em comparação com edições anteriores. “Como sempre, estaremos em contato próximo com as principais autoridades de segurança e prestando grande atenção aos eventos políticos globais. Todas as medidas essenciais para garantir a integridade dos participantes e convidados estão sendo implementadas”, diz um comunicado oficial do festival.

Segundo a nota, desta vez, por exemplo, mesmo convidados e jornalistas não poderão mais levar sacolas grandes ou malas para dentro dos cinemas. As revistas nos pertences de todos os espectadores também serão intensificadas. “Não podemos fornecer informações adicionais, já que isso pode comprometer a efetividade do trabalho. Mas estamos na esperança de uma Berlinale pacífica e que seja aberta para o mundo”, finaliza a nota.

Essa “abertura para o mundo” é, de fato, uma das pautas centrais desta Berlinale. O presidente e curador do evento, Dieter Kosslick, fez questão de colocar em foco a questão dos refugiados na Europa e a necessidade de inclusão social deles nos novos países. Um programa especial será dedicado à integração desses imigrantes à vida em Berlim. “Se conseguirmos não associar nosso medo do terrorismo com o influxo atual de refugiados, é possível que a gente descubra que eles podem nos ajudar a colocar em prática um enorme experimento de tolerância social”, diz Kosslick, ressaltando que só no ano passado 79 mil imigrantes que deixaram zonas de conflito buscaram abrigo na capital da Alemanha.

Doações, comidas e convites

Nesta edição, a Berlinale promove entre convidados e o público uma arrecadação de fundos destinada a ajudar vítimas de torturas e perseguições – caixas de doação estarão espalhadas nas áreas próximas ao Palácio. Já um projeto gastronômico terá refugiados preparando pratos típicos de seus países para os participantes do festival. Além disso, uma iniciativa estimulará que berlinenses convidem estrangeiros para que os acompanhem em sessões de filmes.

“Conviver com imigrantes já mudou a sociedade alemã positivamente e, desde o último verão, isso também tem acontecido na relação com os refugiados. A Berlinale, que é uma zona de tolerância, tem tido bastante prática com esse tipo de experiência”, afirma Kosslick. “Devemos fazer tudo o que for possível para tratar as pessoas com dignidade e dar a elas um novo lar.”

A linha curatorial de Kosslick faz jus ao histórico de “politização” da Berlinale. Dos três principais festivais de cinema europeus (os outros dois são o de Cannes, na França, e o de Veneza, na Itália), o de Berlim é tradicionalmente famoso por seu engajamento. Os filmes escolhidos para competir e vencedores do Urso de Ouro costumam abordar temas políticos. No ano passado, por exemplo, quem ganhou o troféu principal foi o iraniano “Táxi Teerã”, de Jafar Panahi, gravado na clandestinidade por um diretor proibido de deixar seu país. Apesar das (muitas) qualidades do longa, a premiação foi um evidente aceno ao fato de o cineasta ser uma das vozes contra governos recentes do Irã.

Política em mais de 60% dos filmes

Na edição de 2016, dos 18 filmes em competição, pelo menos 12 (66%) abordam de alguma maneira questões políticas. É o caso do documentário “Fuocoammare”, de Gianfranco Rosi, que retrata os moradores de Lampedusa, ilha italiana aonde corriqueiramente chegam imigrantes africanos em busca de abrigo. O bósnio Danis Tanovic (de “Terra de Ninguém”) promete uma reflexão sobre o sentido de ser “europeu” em “Death in Sarajevo”, com uma trama ambientada nos bastidores do evento que relembra os cem anos do atentado que culminou na Primeira Guerra Mundial.

Alguns filmes recorrem a conflitos políticos do passado para tecerem comentários sobre a situação atual do mundo. É o caso de “Alone in Berlin”, de Vincent Perez, drama que defende o pacifismo a partir da história da resistência de alemães contra o nazismo no começo da década de 1940. “Cartas da Guerra”, de Ivo M. Ferreira, evoca a derrocada do colonialismo português nos anos 1970, enquanto o ambicioso “A Lullaby of the Sorrowful Mystery”, de Lav Diaz (que tem oito horas de duração!) revisita a trajetória de um herói na insurreição filipina contra a colonização espanhola, no século 19.

Ainda entre os que disputam o Urso de Ouro, prometem pinçar os nervos políticos o drama mexicano “Soy Nero”, de Rafi Pitts, sobre a busca pelo Green Card por parte de um jovem hispânico, “The Commune”, do dinamarquês Thomas Vinterberg, sobre um grupo de pessoas que opta por viver em uma comunidade com normas próprias, e “24 Weeks”, da alemã Anne Zohra Berrached, que aborda questões como empoderamento feminino e aborto, com roteiro sobre uma mulher que descobre que terá um filho com deficiência.

Fora da competição, a política também dará o tom do Festival de Berlim. O novo filme de Michael Moore, “Where to Invade Next?”, mostra o cineasta em viagem pela Europa em busca de boas ideias para sugerir a políticos americanos. “Chi-Raq”, do sempre polêmico Spike Lee, transpõe uma comédia antibélica do dramaturgo grego Aristófanes para as disputas urbanas entre gangues de Chicago hoje. E “La Route d’Istanbul”, novo filme do franco-argelino Rachid Bouchareb (de “Dias de Glória”), mostra a história de uma jovem belga que vai para a Síria lutar ao lado do Estado Islâmico.

Mas ao menos a sessão de abertura da Berlinale, nesta quinta, promete ser mais leve, com a comédia “Ave, César!”, dos irmãos Coen, sobre a indústria cinematográfica. Se o filme seguir a tradição da dupla de irmãos americanos, porém, os risos não serão apenas “risos”: virão junto de reflexões bem mais sérias.

Veja a lista dos 18 competidores do 66º Festival de Berlim:

- "24 Wochen" ("24 Semanas"), de Anne Zohra Berrached (Alemanha) - première
- "Chang Jiang Tu", de Yang Chao (China) - première
- "Inhebbek Hedi" ("Hedi"), de Mohamed Ben Attia (Tunísia/Bélgica/França) - première
- "Soy Nero" ("Sou Nero"), de Rafi Pitts (Alemanha/França/México) - première
- "Alone in Berlin" ("Sozinho em Berlim"), de Vincent Perez (Alemanha/França/Reino Unido)
- "Boris sans Béatrice" ("Boris sem Beatriz"), de Denis Côté (Canadá)
- "Cartas da Guerra", de Ivo M. Ferreira (Portugal)
- "Ejhdeha Vared Mishavad!" ("A Chegada do Dragão"), de Mani Haghighi (Irã)
- "Fuocoammare" ("Fogo no Mar"), de Gianfranco Rosi (Itália/França) - documentário
- "Genius" ("Gênio"), de Michael Grandage (Reino Unido/EUA) - première
- "Hele Sa Hiwagang Hapis" ("Uma Canção de Ninar para um Triste Mistério"), de Lav Diaz (Filipinas/Singapura)
- "Kollektivet" ("A Comuna"), de Thomas Vinterberg (Dinamarca/Suécia/Holanda)
- "L'avenir" ("O Que Vem por Aí"), de Mia Hansen-Løve (França/Alemanha)
- "Midnight Special" ("Meia-noite Especial"), de Jeff Nichols (EUA)
- "Quand on a 17 ans" ("Os 17 Anos"), de André Téchiné (França)
- "Smrt u Sarajevu/Mort à Sarajevo" ("Morte em Sarajevo"), de Danis Tanovic (França/Bósnia-Herzegóvina)
- "Zero Days" ("Zero Dias"), de Alex Gibney (EUA) - documentário
- "Zjednoczone Stany Milósci" ("Estados Unidos do Amor"), de Tomasz Wasilewski (Polônia/Suécia)

Filmes fora da competição:

- "Hail, Caesar!" ("Ave, César!"), de Joel e Ethan Coen (EUA/Reino Unido)
- "Where to Invade Next?" (“Onde Invadir Depois?”), de Michael Moore (EUA) - documentário
- "Chi-Raq", de Spike Lee (EUA)
- "La Route d'Istanbul" (“A Estrada para Istambul”), de Rachid Bouchareb
- "Mahana" ("O Patriarca"), de Lee Tamahori (Nova Zelândia) - première
- "Saint Amour" ("Amor Santo"), de Benoît Delépine e Gustave Kervern (França/Bélgica) - première
- "Des Nouvelles de la Planète Mars" ("Notícias do Planeta Marte"), de Dominik Moll (França/Bélgica) - première