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Anna Muylaert fala de ambiguidade sexual em sua bem-sucedida volta a Berlim

"Mãe Só Há Uma" é o novo filme da cineasta Anna Muylaert, que apresentou o longa no Festival de Berlim neste domingo (14) - Divulgação
"Mãe Só Há Uma" é o novo filme da cineasta Anna Muylaert, que apresentou o longa no Festival de Berlim neste domingo (14) Imagem: Divulgação

Bruno Ghetti

Colaboração para o UOL, em Berlim

14/02/2016 22h01

Em 2015, a cineasta Anna Muylaert fez um enorme sucesso no festival de Berlim com “Que Horas Ela Volta?”, que recebeu um prêmio do público no evento. Agora, um ano depois, a diretora retorna ao mesmo festival, apresentando seu novo longa, “Mãe Só Há Uma”, também na mostra paralela Panorama. O filme é menor em escala, mas tem toques formais mais ousados que o longa que a consagrou na edição do ano passado.

Antes da sessão de estreia, Muylaert subiu ao palco para apresentar seu filme ao público e deixou claro: desta vez, não tem as mesmas expectativas que possuía com o filme anterior. Disse não esperar prêmios nem o mesmo tipo de acolhida do público. Mas talvez a cineasta esteja enganada: seu novo trabalho tem muito mais poder de comunicação que ela mesma imagina – nas duas sessões que o longa teve até o momento em Berlim, arrancou muitos aplausos e elogios dos espectadores.

A trama agridoce se inspira livremente em um caso verídico ocorrido em Goiás, no anos 1990, quando o menino Pedrinho foi roubado na maternidade por uma mulher que o criou como sendo seu filho biológico. Quando a verdade veio à tona, o garoto já era adolescente, mas teve de ir morar com os pais legítimos depois que a falsa mãe foi presa.

Em “Mãe Só Há Uma”, o protagonista se chama Pierre, e também ele vai morar com a mãe verdadeira depois de descobrir o que houve quando era bebê. Mas as semelhanças param por aí. Muylaert aproveita a trama para falar de outras questões que não apenas a da maternidade. Uma delas é a da ambiguidade sexual – o protagonista é um rapaz de sexualidade quase impossível de rotular. Ele tem a voz bem masculina, mas pinta as unhas com esmalte azul e gosta de usar cinta-liga. Na balada, beija homens e mulheres. Não quer e nem se preocupa com paradigmas sexuais; busca apenas ter prazer, sem “encanações”.

“De uns anos para cá, voltei a frequentar mais a noite, conheci mais pessoas jovens, inclusive muitos gays. Comecei a me deparar com uma cena muito diferente da de quando eu parei de sair, em 1995”, conta a diretora. “Aí eu resolvi trazer isso para o personagem [Pierre], para deixar ele mais contemporâneo”.

O ator que interpreta Pierre, Naomi Nero, não tinha experiência dramática anterior. “Foi bem difícil achar o ator, até porque é um personagem difícil. Muitos vinham fazer teste e diziam que eram contra o estilo do personagem. O Naomi, até por ter vivência dentro de casa [ele tem uma irmã trans], conhecia o universo e sabia de muitas das histórias e diálogos. Aí me indicaram ele para um teste e eu o escolhi, pela leveza que ele tem”.

“Mãe Só Há Uma” repete uma característica comum aos filmes da diretora: há atores com registros de atuação bastante distintos. O elenco inclui desde o experimentado Matheus Nachtergaele, como o pai biológico de Pierre, ao iniciante Naomi, contando ainda com atores em estilo mais teatral e outros de veia mais cômica. Em um primeiro momento, as diferenças de estilo causam um certo estranhamento, mas como o reencontro entre um garoto com sua família que ele nunca conheceu é marcado por vários momentos de “estranheza”, essa opção vem a calhar.  “Eu não sou diretora de homogeneizar estilos de atuação. Eu incito que os próprios atores criem. Se eu escolhi uma determinada pessoa para um papel, eu quero que ela brilhe naquilo que ela é. O ator que vem é só faz o que está escrito no roteiro, esse eu não chamo de novo”, diz a diretora.

Um dos destaques do elenco é o jovem Daniel Botelho, que interpreta Joca, o irmão biológico de Pierre, mas que tem gostos completamente distintos dele. O garoto tem um senso de humor e um tino para improviso bastante aguçados – praticamente rouba as cenas em que aparece. Também ele é iniciante. “O menino é um geninho, ele nasceu ator. Minha produtora de elenco trouxe ele pra eu ver, não precisou nem fazer teste: ele chegou e ficou. O personagem ele é baseado no meu filho, na geração dele, que adora uma ironia”, conta Muylaert.

Cena do filme "Que Horas Ela Volta?", de Anna Muylaert - Divulgação/Aline Arruda - Divulgação/Aline Arruda
Cena do filme "Que Horas Ela Volta?", de Anna Muylaert. Sucecesso comercial do filme fez diretora sentir-se discriminada. "Houve muito sexismo", disse ela no Festival de Berlim
Imagem: Divulgação/Aline Arruda
O personagem Joca tinha bem mais cenas no roteiro original, que contava com uma outra estrutura: mostrava a vida de Joca e a de Pierre paralelamente, em trechos alternados, até o momento em que o mais velho passasse a viver com a nova (velha?) família. O filme chegou a ganhar uma primeira montagem com essa versão da história. “Mas quando você ia de uma família para a outra, você ficava confuso em relação ao que sentir. O roteiro original não estava funcionando”, reconhece Muylaert, que achou melhor voltar para a ilha de edição e dar uma nova estrutura ao filme, desta vez mais focada no personagem Pierre.

Em uma espécie de brincadeira com o título, Muylaert escalou a mesma atriz (Daniela Nefussi), com caracterizações distintas, para interpretar as duas mães de Pierre. “A ideia era falar desse contínuo. A mãe é a primeira ação formadora. Muitas vezes você vai para o divã tentar reformatar coisas que, muitas vezes, você é contra, mas não consegue lidar muito bem porque isso foi muito forte [na sua formação]. Por mais que você fuja de uma mãe, você sempre vai acabar encontrando ela de novo”, diz a diretora.


Muylaert se diz feliz com a recepção positiva que o filme tem tido. Segundo ela, na segunda sessão, que tinha mais jovens na plateia, o público teve uma reação mais “relaxada”. “Mas talvez que estivesse mais relaxada fosse eu. Estava muito nervosa na noite da estreia”.

De volta à Berlinale um ano após o triunfo com “Que Horas Ela Volta?”, a diretora faz um saldo sobre a experiência que teve com seu filme desde que ele alçou novos voos a partir de Berlim. “O filme causou um nível de comoção e discussão como há muito tempo não havia no cinema nacional. Foi uma experiência ótima, mas também houve muito sexismo. Nunca tinha havido uma mulher no cinema brasileiro de tanto destaque [comercial]. A questão não é o filme: é o dinheiro que ele rende. Se é filme ‘de arte’, está tudo tranquilo. Agora, valendo dinheiro...”, diz a diretora. “Só que é isso: na hora que eu entrei na zona do dinheiro, eu senti um sexismo que eu nunca tinha sentido. Há um ano, aqui, neste mesmo lugar, eu era uma Pollyana, uma artista ingênua”, conclui a cineasta, hoje bem mais "escolada" que a que veio a Berlim no ano passado.