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Laerte: Como em "A Garota Dinamarquesa", minha descoberta não veio do nada

Laerte Coutinho*

Colaboração para o UOL, em São Paulo

17/02/2016 06h15

A pedido do UOL, a quadrinista Laerte Coutinho deu seu depoimento sobre o filme "A Garota Dinamarquesa", adaptação ficcionalizada da história de Lili Elbe, que nos anos 1910 se tornou a primeira pessoa submetida a uma cirurgia de redesignação sexual. O filme está em cartaz e concorre ao Oscar de melhor ator (Eddie Redmayne), atriz coadjuvante (Alicia Vikander), figurino e direção de arte.

A descoberta nunca é do nada. Em “A Garota Dinamarquesa”, a pintora dinamarquesa Lili Elbe (Eddie Redmayne) percebe-se mulher quando posa despretensiosamente como modelo para sua mulher, a ilustradora Gerda Wegener (Alicia Vikander). Comigo, foi uma tira que eu fiz.

Eu não sabia, mas estava explorando a transgeneridade nas minhas tiras já havia algum tempo. Antes, sob a forma de farsa, do modo como travestis e transexuais costumam aparecer --como elemento da comédia, principalmente quando é de homem para mulher.

Laerte - Aline Arruda/Divulgação - Aline Arruda/Divulgação
A quadrinista Laerte Coutinho
Imagem: Aline Arruda/Divulgação

Desta vez, meu personagem, Hugo, se travestiu sem a menor desculpa do roteiro, pelo prazer mesmo. Quando isso saiu, uma amiga minha mandou um e-mail me chamando a atenção e perguntando se eu não queria fazer parte de um grupo de crossdressers, como se chamavam.

Foi surpresa para mim, porque eu compreendi que não era apenas uma fantasia que estava presente nas minhas histórias. Era um desejo. A partir daí, e por meios nem sempre muito diretos, cheguei, afinal de contas, a um ponto em que quis me vestir, me comportar e me expressar como uma mulher.

Aos poucos, fui compreendendo que era isso que eu queria ser permanentemente. Eu não queria ser assim só aos fins de semana, em grupos específicos, em situações mais ou menos clandestinas. Eu queria fazer isso o tempo inteiro.

Mais uma vez, acabei sabendo pela imprensa. Falei disso numa entrevista, o repórter alertou: "Olha, isso aqui vai repercutir. Tudo bem?". Eu falei: "Tá, ok, vamos lá".

Foi o que construiu minha passagem. Daí para frente, eu não tive mais dúvidas do que eu queria. Tenho dúvidas sobre até onde eu estou indo, mas não do que eu quero.

Aos poucos eu fui entendendo que a palavra travesti podia ser utilizada também. E aos poucos eu fui entendendo que a palavra travesti não me representava inteira. Fora que esses termos todos também têm uma conexão com construções identitárias de grupos.

Tratada sempre de forma cômica, a transgeneridade tem sido retratada de forma séria nos últimos anos, como nas séries “Transparent” e “Orange Is the New Black”, e no filme “Tangerine”, que assisti recentemente. Todos eles com uma inflexão humorística, mas a transgeneridade  já não é mais motivo de piada.

“A Garota Dinamarquesa” se inscreve nessa linha. É um drama sobre um conflito de gênero e, do ponto de vista de informação histórica, é muito bom.

Lili Elbe aparece onde a redesignação do corpo se coloca como possibilidade pela primeira vez. Era necessária para uma pessoa na situação do Einar Mogens Wegener [como Lili foi registrada ao nascer], e foi do que ele pôde se valer. O apoio da psiquiatria e de outras formas de terapia ou de entendimento era nulo. A coisa mais legal que eles tentavam envolvia camisa de força. Ainda hoje é assim, em milhares de ocasiões e situações.

O fato é que a psiquiatria e a medicina hoje encaram a transgeneridade de uma forma mais civilizada, para dizer o mínimo, mas naquela época era linha dura. A única pessoa que compreendeu mesmo o que se passava era o cirurgião plástico, que colocou seu saber e sua técnica a serviço da ideia de que se uma pessoa sente que seu corpo é inadequado, esse corpo pode ser cirurgicamente transformado. Essa ideia é bastante utilizada hoje, mas não é mais a única.

A transgeneridade é compreendida de maneira mais ampla, a ponto de abarcar outras formas de expressão como a da travesti, da crossdresser, das pessoas que se dizem transformistas. Todas essas formas de expressão estão compreendidas dentro do que a gente entende com o termo transgeneridade.

O filme levanta essas questões. A primeira delas é a diferença entre a questão de gênero e a orientação sexual. Einar não era homossexual.

O segundo ponto é que a relação dela é amplamente fortalecida pela mulher dela, que foi a primeira pessoa a compreender mesmo o que se passava. Ela amava o Einar e continuou a amar a Lili.

O filme ilumina o apoio do meio familiar e social à pessoa trans. São pessoas que não precisam de tolerância, precisam de afeto mesmo. Como todo mundo.

E mostra como é possível compreender a ciência não como uma verdade imutável, mas como processo também de evolução, que aprende com a história humana.

* Depoimento dado ao jornalista Tiago Dias