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Antonio Pitanga: O negro não escreve, dirige, nem faz parte dos críticos

O ator Antonio Pitanga - Divulgação
O ator Antonio Pitanga Imagem: Divulgação

Antonio Pitanga

Especial para o UOL*

22/02/2016 07h00

Em pleno século 21, estamos vivendo um divisor de águas na indústria cinematográfica. O audiovisual é uma das categorias mais democráticas de arte. Ou pelo menos deveria ser. É uma magia que pode ser realizada por todos, independente de sua raça, nacionalidade, orientação sexual etc.

O cinema pode ser feito por atores. Atores brancos, ruivos, negros, indígenas, europeus, brasileiros, americanos... Por pessoas que tenham o real saber sobre esta arte.

Num momento em que há tanta discussão acerca da falta de espaço para o negro na indústria [levantada especialmente pela falta de negros entre os atores indicados ao Oscar 2016], afirmo que não existe ator negro. Existe ator.

Mas não posso deixar de falar sobre a falta de igualdade que perpetua. O negro não está escrevendo, dirigindo, nem fazendo parte do grupo de críticos. Hoje, 95% dos profissionais do cinema são brancos. Então, precisamos entender que isso se deve a questões culturais e não raciais. Os maiores empresários, diretores, roteiristas e críticos são brancos. Então o universo deles está focado ali.

A luta por um sistema igualitário começou com o grito de pessoas como eu, Milton Gonçalves, Ruth de Souza, Léa Garcia, Abdias Nascimento, Grande Otelo e tantos outros. Nunca pedimos espaço para nós, negros. Pedimos igualdade entre nós e todos os outros artistas. Com tantos países como Brasil, Estados Unidos e países afriacanos encabeçando grandes obras, não é possível que não tenhamos profissionais negros capacitados participando dessas produções. Daí o estranhamento com a ausência de negros indicados ao Oscar, por exemplo.

Para se ter um julgamento democrático, é preciso que as pessoas tenham minimamente noção do que está sendo produzindo no mundo. E o que acontece hoje é que esse julgamento ainda é dirigido por uma parcela de pessoas colonizadoras. Ou seja, crescem os estereótipos.

Mesmo o negro já tendo mostrado seu potencial e erguido impérios, se consolidado no mundo da arte, música e até se tornado presidente de uma das nações mais poderosas do mundo, como os Estados Unidos, ainda nos deparamos com situações, no mínimo, exclusivas. E é preciso pensar.

Indicados ao Oscar de 2016 - Divulgação - Divulgação
Indicados ao Oscar 2016 de melhor atriz e melhor ator
Imagem: Divulgação

Se não tivermos, não negros, mas pessoas que conheçam a cultura negra, escrevendo, produzindo, dirigindo e criando, não teremos um sistema igualitário na indústria cinematográfica.

Com 57 anos de carreira, me pergunto onde está o sentido de entender a contribuição ou participação de um trabalho feito nas décadas de 1950 e 1960, quando o cinema ainda não tinha essa afirmação cultural brasileira e estávamos criando um processo de resgate e de afirmação. E eu estava lá não como um ator negro, mas como ator.

Alguns frutos maravilhosos ficarão eternizados: "Bahia de Todos os Santos", "Estrada do Amor", "Barravento", "A Grande Feira", "O Caminho da Esperança", "O Pagador de Promessas", "Tocaia no Asfalto", "Senhor dos Navegantes", "Lampião, o Rei do Cangaço", "Sol sobre a Lama", "Ganga Zumba", "Esse Mundo É Meu", "Fábula em Copacabana"...

Faz 10 anos que tento captar para fazer "Malês", uma história negra, que acontece no norte da África, dos negros muçulmanos que vão para a Bahia antes da chegada de Dom João 6º. Esse é o maior levante que aconteceu na história desse país, protagonizado por negros para tomar o poder. Negros do candomblé e do catolicismo contra o regime da escravidão.

Estou há 10 anos tentando esse financiamento e não consigo. Tenho um dos melhores produtores do Brasil, um elenco fantástico composto por Seu Jorge, por exemplo, hoje uma referência musical na criação de trilhas sonoras. Mas cadê o financiamento?

Dia desses, o meu filho Rocco Pitanga me perguntou: quando é que o negro vai ter coadjuvante? Ele é sempre coadjuvante do branco? É uma coisa muito delicada.

Não podemos cair na esparrela de exigir o espaço para o ator negro. O espaço tem que ser igualitário. Pois a alma do cinema não tem cor.

* Antonio Pitanga, 76, é ator e atuou em mais de cem títulos no cinema e na TV, entre eles os filmes "O Pagador de Promessas", "Barravento" e "Os Pastores da Noite", e as novelas "O Rei do Gado" e "Dona Beija".