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De carcereiro a promessa do cinema: Diretor desenvolveu olhar com detentos

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

01/04/2016 12h20

O cineasta baiano Aly Muritiba estreia nesta semana seu segundo filme de ficção, “Para Minha Amada Morta”, somando elogios na imprensa estrangeira e os principais prêmios no último Festival de Brasília. Uma conquista e tanto para quem, há quatro anos, ainda trabalhava como carcereiro em um presídio em Curitiba.

Não se trata de alguém que se trancava em cineclubes nas horas livres ou sonhava em pisar em set de filmagem ao invés dos corredores da penitenciária. O cinema o encontrou, assim, sem querer. "Nunca imaginei ou desejei fazer cinema. Prestei vestibular para ocupar o tempo", conta, sem rodeios.

A elogiada mise-en-scène do diretor carrega a experiência dos sete anos na função. A vivência com um ambiente carcerário é tema de seus primeiros trabalhos, com os curtas “A Fábrica” (pré-selecionado para o Oscar de 2013) e “Pátio”, e o documentário “A Gente”. Neste último, filmado em 2013, o cineasta se dividiu nas duas funções. Ouvia muito dos colegas de profissão: “Larga essa câmera um pouquinho e vem nos ajudar a algemar esses presos”.

“Uma das faculdades que maximizei lá dentro foi de ouvir o outro, ter empatia”, detalha. “Você ouve bastante. Os presos contavam histórias, muitas delas mentirosas para c******, para tentar nos seduzir ou conseguir um maço de cigarros, mas muitas delas verdadeiras e difíceis de se ouvir. Por mais que você tente se blindar e não se envolver, rola uma empatia.”

O exercício da observação conduz toda a ação de “Para Minha Amada Morta”, em principal, o protagonista. Logo após a morte da mulher, Fernando (Fernando Alves Pinto) descobre uma caixa de VHS antigas. Entre filmagens de festas e apresentações de balé, ele assiste imagens da própria esposa na cama com outro homem. A revelação é gráfica e deixa o viúvo atônito. A mulher está nua em um hotel vagabundo e fala para o desconhecido: “Você foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida”.

O que poderia ser um suspense de vingança se revela um drama sólido e forte do personagem que busca entender a complexidade dos relacionamentos. “Eu conseguia completamente me colocar no lugar do Fernando, seus temores, suas dores e insegurança. De certa maneira, ele se aproxima daquele desconhecido para poder entender”, defende Muritiba.

Trailer de "Para Minha Amada Morta"

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Dublê de mão

A primeira vez que Muritiba assistiu a um filme foi ainda na cidadezinha de Mairi, com pouco mais 20 mil habitantes e distante cerca de 300 km de Salvador. Uma trupe itinerante viajava pelo sertão com um telão e uma pilha de películas empoeiradas, em sua maioria, filmes de western e artes marciais.

“Devo ter visto todos os filmes do Bruce Lee”, relembra. “Comumente, eles levantavam a lona ao lado de casa, e batiam na porta para pedir para puxar uma mangueira para eles pegaram água, tomarem banho. Eles usavam nossa água e, por consequência, a gente tinha entrada livre.”

Quando completou 18 anos, decidiu tentar a vida em São Paulo para cursar História na Universidade de São Paulo (USP). Sem dinheiro, foi bilheteiro da estação de trem de Guaianazes, extremo leste da cidade. Foi lá que entrou, pela primeira vez, em um set de filmagens, apenas como observador. “No máximo, apareceu minha mão dando o bilhete ao personagem”, ele relembra, sobre a gravação do longa “De Passagem” (2003), de Ricardo Elias.

O trabalho de dublê involuntário o levou pela primeira vez à Mostra de Cinema de São Paulo. De cara, não gostou do filme, mas a culpa não era da produção. “Meu gosto era do público médio. Eu era que esse cara que abria a Veja e que olhava no finalzinho os filmes recomendados. Só assistia a filme norte-americano”.

Hoje, Muritiba circula nos festivais de Cannes e de Sundance, onde já é incensado como uma das grandes surpresas vindas do Brasil, mas sabe que aquele bilheteiro do passado não assistiria ao próprio filme. “Tem um tempo dilatado. Ausência de plano ou contraplano. Mas é um filme de corno. Se eu botasse um Wesley Safadão, um Pablo, para tocar ali ia fazer um sucesso”, observa, rindo.

Com os próximos projetos na agulha -- uma comédia de humor negro chamada 'Jesus Kid" e a adaptação de "Barba Ensopa de Sangue", de Daniel Galera --, ele questiona o próprio futuro no cinema: “Eu não sou cineasta. Eu estou cineasta. Com essa crise do inferno que vai vir, vai ficar difícil para o audiovisual. Aí eu volto a ser bilheteiro ou agente penitenciário. O que eu faço não me define”.