Não se engane: "Star Trek: Sem Fronteiras" tem gosto da série original
"Star Trek: Sem Fronteiras" é um filme que retrata com incrível fidelidade o estilo e o espírito da série original de "Jornada nas Estrelas". E faz o que até agora nenhum dos longa-metragens produzidos pelo diretor-prodígio J.J. Abrams havia conseguido, ao atrelar a ação desenfreada a uma sensibilidade aguçada no tratamento dos personagens.
Sem entregar detalhes para não estragar a experiência de quem ainda não viu, o resumo da ópera é: em meio à já clássica missão de cinco anos da Enterprise ("spoiler" de 50 anos?), Kirk e sua trupe atendem ao pedido de socorro de uma nave alienígena presa numa nebulosa misteriosa, além do espaço conhecido. Acaba que é uma armadilha, a Enterprise é fortemente atacada ("spoiler" de trailer?) e a tripulação é separada em grupos menores.
Eis a estratégia que o diretor Justin Lin encontrou para dar a merecida atenção aos personagens: ao separá-los numa situação de extremo perigo, podemos vivenciar mais sua realidade interna --isso a despeito de o filme ser assumidamente concentrado em sequências alucinantes de ação, uma marca da franquia desde seu reboot bem-sucedido por Abrams, em 2009.
Há os que ganham mais e os que ganham menos, claro. Entre os mais destacados estão Spock (Zachary Quinto) e McCoy (Karl Urban), que se veem juntos pela primeira vez e reprisam a velha "camaradagem/rivalidade" que marcou esses personagens na série original. Igualmente bem utilizados no filme estão o engenheiro Scott (nada surpreendente, dado que seu intérprete, Simon Pegg, foi um dos roteiristas) e a recém-introduzida Jaylah, vivida por Sofia Boutella.
E, pela primeira vez em três filmes, Kirk (Chris Pine) não é um completo idiota, mas o líder competente e determinado que conhecemos da série original, o que ajuda bastante o filme. Entre os mais escanteados estão Sulu (John Cho) e Uhura (Zoë Saldana), capturados pelo malévolo vilão Krall (Idris Elba), além de Chekov, interpretado pelo ator Anton Yelshin, tragicamente morto semanas antes do lançamento do filme.
É um bocado de personagens, e seria irreal imaginar que todos eles pudessem ser igualmente bem servidos em duas horas de trama. E a história também não é muito complexa, mas tem méritos que os dois filmes anteriores não tiveram: ela faz sentido e, sobretudo, é original. Depois da reciclagem gratuita -- e inapropriada -- de diálogos inteiros do clássico "A Ira de Khan" (1982) em "Além da Escuridão" (2013), é um grande alívio.
Ainda assim, a trama se desenrola de forma competente e equilibra o desenvolvimento de personagens --Kirk e Spock em particular realizam arcos completos entre o começo e o fim do filme-- com a necessidade de não deixar os espectadores cochilarem entre as cenas. (Se você é fã das antigas e espera que façam filmes de alto orçamento hoje como eles faziam as produções de baixo orçamento de "Jornada nas Estrelas" no passado, a culpa definitivamente não é deles.)
As sequências de ação são executadas com a já reconhecida eficiência de Lin, veterano de "Velozes e Furiosos", mas conseguem sempre se refletir sobre a tripulação da Enterprise. E, no fim das contas, se você entrar no cinema despido de preconceitos, sai de lá com a sensação de que viu o que poderia ter sido a série original, tivesse sido criada hoje por Gene Roddenberry.
Como vilão, Krall é mais complexo do que o "monstro da semana" e propõe um debate sobre a natureza e a filosofia da Federação Unida de Planetas --um dos pilares de "Jornada nas Estrelas"--, bem como uma discussão muito contemporânea acerca do que fazer com soldados que criamos para a guerra quando atingimos uma época de paz. Síndrome de estresse pós-traumático, alguém?
Bem, mas se o filme tem gosto de "Star Trek", cheiro de "Star Trek" e cara de "Star Trek", por que tanta gente diz que não é "Star Trek" e que foge à filosofia original do programa?
Eu tenho uma teoria.
Ao longo de 50 anos, o conceito de "Star Trek" se tornou algo sacrossanto pelos fãs, até em razão da atitude papal de seu criador, Gene Roddenberry, em definir o que era e o que não era permissível em seu universo ficcional. Só que Roddenberry foi moldando esse conceito ao longo de 25 anos, entre a estreia da série original, em 1966, e sua morte, em 1991. E a "Star Trek" que ele começou não foi a que ele terminou.
Em suas raízes, "Star Trek" era um faroeste espacial. Foi assim que ele vendeu a série à rede de TV NBC, inclusive. É verdade que, indo além desse conceito, havia roteiros inteligentes, dilemas morais, uma visão progressista da humanidade e personagens cativantes. Mas o fim de cada episódio invariavelmente envolvia Kirk trocando sopapos com alguém.
"Star Trek: Sem Fronteiras" segue exatamente essa receita --uma história simples de seguir e uma trama orientada à ação que não perde de vista os personagens e os trata com dignidade. É especialmente refrescante ver Kirk agindo como um adulto, em vez de passar o filme correndo atrás de rabos de saia -- só para variar.
Claro que a sensibilidade cinematográfica moderna exige uma transformação da linguagem --hoje, na era dos filmes de super-heróis, nenhuma briga de socos é boa o bastante se não tiver saltos por penhascos e alguma espécie de voo--, mas isso é só a superfície. No núcleo, trata-se de um filme divertido, bem pensado e digno de fazer parte da longeva história de "Star Trek".
*Salvador Nogueira é jornalista de ciência, fã declarado de Star Trek desde os anos 1980 e coautor do livro "Jornada nas Estrelas: O Guia da Saga", lançado neste ano.
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