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Após dez anos sem dirigir, Gibson exibe em Veneza herói de guerra sem armas

Bruno Ghetti

Colaboração para o UOL, de Veneza (Itália)

04/09/2016 13h43

A priori, o filme de guerra que Mel Gibson mostrou na manhã deste domingo (4), no Festival de Veneza, não difere muito de outros do gênero. “Hacksaw Ridge” mostra mocinhos (americanos) contra bandidos (no caso, japoneses), belos efeitos visuais nas cenas de batalha, momentos de alto heroísmo no front. A diferença, porém, está no herói propriamente dito: o do filme não mata ninguém. Aliás, ele sequer pega em armas – e, ainda assim, chega ao fim da guerra condecorado pelo Exército dos EUA. Exibido fora da competição principal, o longa marca a volta de Gibson à direção após dez anos (seu último longa foi “Apocalypto”, de 2006).

O astro se inspirou na história verídica de Desmond Doss, soldado americano que foi a campo em uma das mais sangrentas batalhas do Pacífico (em Okinawa, Japão), na Segunda Guerra Mundial. No front, atuou na função unicamente de médico, tendo sido responsável por salvar a vida de dezenas de soldados feridos. Mesmo em meio a tiroteios e bombas, seu ato mais agressivo se resumia a aplicar injeções de morfina em seus compatriotas (e, às vezes, até em adversários).

“O que me chamou a atenção é que ele é um homem comum que faz coisas extraordinárias, em circunstâncias difíceis”, disse à imprensa um Mel Gibson um pouco roliço, com uma barba longa e grisalha, quase branca. “A luta dele é singular: vai para a guerra munido apenas de fé e de convicção. E com essas duas coisas somente foi capaz de fazer cosias magníficas”, disse o ator e diretor.

Andrew Garfield foi escolhido por Gibson para o papel principal. “[Desmond] era um homem muito simples. Trazia consigo um conhecimento interno: de que não podia tirar a vida de outras pessoas”, disse o ator. “Vivemos hoje em um mundo tão cheio de separações, violência, guerras. Desmond serve como um símbolo que encarna a filosofia do ‘viva e deixa viver’”.

O filme tem duas partes: uma primeira mais romântica e cômica, centrada na vida de Desmond antes de se alistar. Ele mora em uma cidadezinha e leva uma vida pacata com os pais e o irmão. Após um trauma de infância, desenvolve quase que uma obsessão com a ideia da morte. Decide ir para a Guerra ao ver pessoas da mesma idade voltando sempre feridas do conflito, o que lhe deixa com certa sensação de culpa.

Mel Gibson, diretor de "Hacksaw Ridge", ao lado do protagonista do filme, Andrew Garfield - Tiziana Fabi/AFP - Tiziana Fabi/AFP
Mel Gibson, diretor de "Hacksaw Ridge", ao lado do protagonista, Andrew Garfield
Imagem: Tiziana Fabi/AFP
Garfield compõe o personagem como um sujeito boa praça e meio desajeitado (com forte sotaque sulista americano), mas de grande firmeza moral. No quartel, sofre pesado bullying dos soldados mais fisicamente aptos que ele, mas nada o impede de ir para o front defender seu ideal de ajudar quem precisa – sem encostar em armas, conforme ele deixa claro ao se alistar.

“Não faço leituras com atores. Acho que quando você conversa com uma pessoa, mesmo por Skype, você já tem uma ideia de quem ela é. Sabia que Andrew tinha interesse no filme, isso foi importante para escolhê-lo”, disse Gibson, sempre alisando sua barba. “Garfield não é um Schwarzenegger, não precisa carregar dois homens para você ver que pode ser um homem forte. Pode mostrar isso de outras maneiras”, elogiou.

“Obtenho muito mais inspiração nas pessoas comuns”, disse Garfield, confrontando, de maneira não muito velada, seu personagem no filme de Gibson com o protagonista que já viveu em “O Espetacular Homem Aranha”. “Meu irmão é médico, cuida de três filhos, uma mulher, salva seus pacientes. Para mim, esses são os verdadeiros heróis: aqueles que não buscam o heroísmo”.

Garfield e Gibson parecem mesmo ter se deixado seduzir pelo caráter heroico do personagem. No filme, Desmond tem um caráter tão inatacável e uma bravura tão imbatível que, por fim, já não é mais um herói; é praticamente um santo. O filme infelizmente também derrapa na hora de exaltar os valores americanos, colocando os japoneses na já tradicional figura de inimigos “malvados”. Gibson não consegue escapar da armadilha do maniqueísmo, tão comum nos longas de guerra.

Mas, ao menos, tem um claro caráter pacifista. “Não acho que existam guerras justas”, diz Gibson. “Eu odeio guerras. Mas não posso deixar de amar os guerreiros, de prestar uma homenagem às pessoas que se sacrificam pelas outras. Precisamos compreendê-los quando voltam para casa. Espero que meu filme tenha ajudado nisso”

A primeira parte do filme, na cidade do interior, é agradável, mas tem alguns problemas técnicos – a sincronização das falas tem problemas, dando a parecer que o filme foi terminado às pressas para chegar ao festival. Mas a segunda parte, no campo de batalha, são tecnicamente mais bem acabadas. Ao menos nos trechos de ação, o Gibson diretor não perdeu a forma.

Gibson já não é nem de longe um astro do peso que já foi. Questões da vida pessoal (fez declarações antissemitas e teve problemas com álcool), filmes ruins e o avanço da idade cortaram uma porção generosa de sua celebridade na última década. Mas ainda é um ídolo, sem dúvida. Mesmo tanto tempo sem dirigir, o astro diz que não pretende abandonar o duplo ofício no cinema. “Eu gosto de dirigir, de ver [na tela] coisas que eu tinha imaginado. Talvez seja megalomania... vai saber?”.