"Ridículo" e "absurdo" das operações militares dos EUA são mote de comédia
Uma das cenas mais interessantes de “Cães de Guerra”, a partir desta quinta-feira (8) nos cinemas, é a que mostra o preço —com efeitos visuais e sonoros— de cada peça de uniforme e arma usada por um soldado americano durante a ocupação do Iraque. A câmera do diretor Todd Phillips revela, de forma inusitada e, vá lá, divertida, as reais dimensões da indústria bélica e uma faceta pouco revelada dos conflitos armados contemporâneos.
Adaptação da impressionante história real dos jovens de Miami que burlaram o Pentágono e embolsaram milhões de dólares até serem pegos vendendo balas chinesas estocadas desde a década de 1950 na Albânia como novas, para as forças armadas da maior potência militar do planeta, o filme —uma tentativa de Hollywood de mesclar guerra e humor na mesma tela— é o primeiro dirigido por Phillips desde a trilogia “Se Beber, Não Case”.
"Filmes sobre as recentes guerras em que os EUA se meteu não faltam em Hollywood, em geral com tons patrióticos", comenta o diretor. "O diferencial aqui é que nosso foco é sobre um pequeno grupo de atravessadores que ganha rios de dinheiro e que a maioria de nós jamais suspeitou existirem. O humor, neste caso, nasce do surrealismo, do absurdo da situação. Por isso, creio, dá enorme sentido a esta mescla de gêneros", diz Phillips.
O foco aqui são atravessadores que ganham rios de dinheiro (com as guerras). O humor nasce do surrealismo, do absurdo da situação.
Todd Phillips, diretor
O humor sardônico de “Cães de Guerra” passa longe de clássicos como “M.A.S.H.” e seu olhar deliciosamente enviesado da Guerra da Coreia, ou mesmo “A Recruta Benjamin”, uma década depois, com Goldie Hawn fazendo graça com o imaginário da sociedade americana, que aprendia a lidar com a maior presença das mulheres no universo militar.
Com roteiro cerzido a partir da reportagem publicada na revista “Rolling Stone” por Guy Lawson em 2011, e do livro que o repórter escreveu em seguida, o filme de Phillips conta a história dos amigos David (Miles Teller) e Efraim (Jonah Hill), que descobrem, entre um e outro baseado, uma brecha para entrar no lucrativo mercado de empresas contratadas por Washington durante o governo George W. Bush, para suprir demandas do Pentágono.
O que começa como um negócio de ocasião —“eles começaram aproveitando as migalhas deixadas por gigantes como a Halliburton”, lembra Phillips— transforma os amigos em milionários da noite para o dia, com contratos beirando os US$ 300 milhões. Parte do humor se dá justamente pela surpresa da dupla e sua inadequação em situações-limite, como a reunião em que descobrem terem pedido um valor 15 vezes menor do que a concorrência para determinada tarefa, de extrema periculosidade.
"Quando descobri o que estava por trás da história publicada primeiro pelo 'Times', cheguei à conclusão de que ela era um sumário do ridículo de nossa presença internacional. Eles eram tragicamente hilários. Você lê a reportagem e o livro e, creio, vê o filme, e, especialmente se é americano, ri para não chorar. É o retrato da maneira bizarra como nos preparamos para as invasões e ocupações do Iraque e Afeganistão", diz Lawson.
Drama e fim da amizade na vida real
“Cães de Guerra” está longe de ser uma comédia pura. Há drama de sobra na história narrada a partir da perspectiva de David (Teller), que colaborou com a produção. Os dois vão passar quatro anos na prisão e têm suas vidas devastadas pelo FBI. Efraim, por sua vez, entrou em uma guerra judicial com a Warner Bros. e disputa a veracidade da história tal qual filmada por Phillips.
O fim da amizade da dupla —na realidade havia um terceiro parceiro, ignorado pelo filme— é explicado como resultado da ambição desmedida de Efraim, interpretado com exata grandiloquência por Hill. Sua gargalhada desafinada e a ausência total de autocensura garantem gargalhadas sonoras da plateia em um filme-denúncia cujo tema, no fim, é seríssimo.
"Há graça na dinâmica entre os dois personagens. Este é um filme de 'buddies' em que os dois são completamente diferentes um do outro. Efraim é mais perigoso, manipulador, sem limites, sem laços afetivos profundos com ninguém. Já David tem uma família para cuidar e vê na empreitada a oportunidade tanto de rever o amigo de infância e se sentir importante, quanto de dar uma vida melhor para a mulher e seu bebê recém-nascido. E quando começamos a filmar, algo martelava minha cabeça, estava faltando algo que faria todo mundo se lembrar de Efraim. A resposta foi a risadinha dele", diz Hill.
Cheguei à conclusão de que (a história dos dois traficantes de armas) era um sumário do ridículo da presença internacional dos EUA.
Guy Lawson, autor do livro-reportagem que inspirou "Cães de Guerra"
“Cães de Guerra” é o primeiro projeto da produtora criada por Phillips com Bradley Cooper. O galã de “Se Beber...” faz uma ponta no filme, na pele do personagem mais perigoso da história, um veterano mercenário de guerra que acaba entregando Efraim e David de bandeja para o FBI, quiçá indiretamente.
"David e Efraim não são vilões como o Henry Girard de Bradley (Cooper). O David é, inclusive, pacifista, ia a protestos antiguerra e tudo antes deste negócio cair em seu colo. Eles não criaram as regras do Pentágono, apenas se aproveitam delas. A graça está no fato de que eles vão encontrando brechas milionárias e enchendo o bolso sem entender exatamente o porquê", diz Teller.
Obviamente é difícil achar graça em jovens soldados americanos, afegãos e iraquianos recebendo munição ultrapassada no campo de batalha. Mas Phillips escancara de forma original a omissão e a corrupção do governo americano através das ações de dois "caras comuns", “dudes”, interessados em viver, no fim das contas, o sonho americano. Este é traduzido pelo sucesso instantâneo da empresa de fachada criada por Efraim que, na prática, funciona como intermediária entre fabricantes de armas (de todos os tamanhos e interesses) e o Pentágono.
"Quis que as pessoas rissem do governo, sim, mas também de nós mesmos. Os EUA vivem realidade bem diversa em suas guerras de conflitos históricos como a Segunda Guerra Mundial, a Coreia ou o Vietnã. Não há alistamento. Tudo parece acontecer em uma realidade distante de todos nós, em um universo paralelo. E é esta nossa ignorância que nos leva a situações embaraçosas como as dos meninos que burlaram o Pentágono. E o riso, doído, infelizmente, está também no fato de que ninguém, além dos dois, foi punido pela Justiça. É para rir ou para chorar? Ou os dois?", pergunta Phillips.
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