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De faroeste a Jackie Kennedy, mulheres dominaram o Festival de Veneza 2016

Bruno Ghetti

Colaboração para o UOL, em Veneza (Itália)

09/09/2016 06h00

Uma coisa é inegável: o Festival de Veneza de 2016, que termina neste sábado (10), foi das mulheres. Talvez não fora das telas – apenas duas diretoras tiveram filmes na competição principal – mas nos filmes apresentados nesta edição, elas tiveram amplo predomínio: questões femininas como a emancipação da mulher, a liberdade sexual e a luta contra o machismo deram o tom na programação da mostra italiana.

Dakota Fanning em cena de "Brimstone", de Martin Koolhoven - Divulgação - Divulgação
Dakota Fanning em cena de "Brimstone", de Martin Koolhoven
Imagem: Divulgação

Um dos grandes destaques nesse sentido é o faroeste “Brimstone”, do holandês Martin Koolhoven. O filme se passa no Velho Oeste, quando a jovem Liz (vivida por Dakota Fanning) enfrenta de igual para igual um líder religioso da região, que é extremamente machista e conservador. A heroína come o pão que o diabo amassou: passa parte da infância abandonada, depois vive por anos como prostituta e, por fim, precisa se auto-mutilar para conseguir refúgio da perseguição do reverendo reacionário. Mas quando ela decide revidar, não há “macho” que consiga detê-la.

“O que me interessou nesse filme foi isso: é muito raro ver uma mulher como protagonista em um faroeste”, disse Dakota Fanning à imprensa. “E todas as vezes que me deparo com roteiros que lidam com a força e o poder de personagens femininos, sempre fico muito atraída pelo projeto”, explicou a atriz.

6.set.2016 - Suki Waterhouse chega para a première de "The Bad Batch" acompanhada da diretora Ana Lily Amirpour no Festival de Veneza - Ettore Ferrari/ANSA via AP - Ettore Ferrari/ANSA via AP
A atriz Suki Waterhouse, estrela de "The Bad Batch", com a diretora Ana Lily Amirpour
Imagem: Ettore Ferrari/ANSA via AP

Violência

Outra produção com uma personagem feminina mais do que valente é “The Bad Batch”, que, aliás, é dirigido por uma mulher (a britânica Ana Lily Amirpour). O filme é uma extravagante fantasia futurista que mostra uma jovem (Suki Waterhouse) de perna e braço amputados, que só pode contar consigo mesma para enfrentar diversos desafios em uma sociedade em que a barbárie predomina.

“Antes de rodarmos, Lily [a diretora] me disse: ‘Será uma experiência em que você sofrerá mais do que jamais antes’”, contou Suki Waterhouse aos jornalistas. E de fato ela sofre muito – e toda violência contra ela, de certa forma, reflete sobre o tratamento dado às “minorias” em geral no mundo de hoje.

Cena do filme "Une Vie", de Stéphane Brizé - Divulgação - Divulgação
"Une Vie", de Stéphane Brizé
Imagem: Divulgação

Favorito

Um dos filmes mais cotados para ganhar prêmios, o francês “Une Vie”, de Stéphane Brizé, mostra as dificuldades de ser mulher em uma sociedade patriarcal e sexista como era a França no século 19. O longa apresenta a dramática vida de Jeanne, uma mulher burguesa cuja rotina é marcada pelo tédio. O máximo de emoção em sua vida se dá quando visita algum parente ou uma amiga (ou quando descobre um dos vários casos extraconjugais do marido).

“Jeanne queria outra vida, mas foi incapaz de sair do mundo infantil e machista que a cercava”, comentou Brizé, sobre a personagem. O preço a pagar por essa incapacidade foi alto: Jeanne, mulher jovial, inteligente e cheia de vida, tem sua existência totalmente limitada pelo meio em que vive. Aos poucos, vai enlouquecendo.

Natalie Portman como Jackie Kennedy em "Jackie", de Pablo Larraín - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Ícone americano

Das mulheres apresentadas na competição, a mais famosa sem dúvida é a ex-primeira-dama dos EUA Jacqueline Kennedy, vivida com brilhantismo por Natalie Portman em “Jackie”. O filme dirigido por Pablo Larraín ("No") a mostra como uma mulher muito forte em aparições públicas, mas vulnerável e vaidosa na intimidade. O que não a impede, no entanto, de ser uma pessoa fortíssima.

Diz o ditado (machista) que “por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher”, mas no caso de Jackie, isso não se aplica: ela jamais esteve propriamente “por trás” de homem nenhum, nem o presidente dos Estados Unidos; era uma figura tão imponente que se imortalizou sozinha, e não à toa ganhou um filme de excepcional qualidade totalmente dedicado a ela (e em que o presidente John Kennedy quase não aparece).

Amy Adams em cena de "A Chegada", de Denis Villeneuve - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Dose dupla

Portman é favorita ao prêmio de melhor atriz, mas tem uma outra grande rival: Amy Adams – que tem duas personagens femininas muito especiais em Veneza. Uma delas é a linguista Louise, de “A Chegada”, dirigido por Denis Villeneuve. No longa, ela é chamada pelo governo dos Estados Unidos para tentar decifrar a linguagem de alienígenas que apavoram a Terra. Ela precisa ter muita coragem e sensibilidade para lidar, praticamente sozinha, com essa empreitada.

Amy Adams em cena de "Nocturnal Animals", de Tom Ford - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

“Li o roteiro e fui ficando tão surpresa...", disse Amy Adams, ressaltando o quanto o gênero ficção científica costuma ser associado aos protagonistas masculinos. “Nunca na carreira eu sequer havia imaginado que um dia participaria de uma ficção científica. Por isso mesmo, foi um enorme desafio”, disse.

O outro personagem de Adams em Veneza é no longa “Nocturnal Animals”, de Tom Ford. O filme é uma grande defesa da liberdade de cada um levar a vida de acordo com a sua própria natureza, sem pressões nem imposições sociais. Nesse sentido, a personagem de Adams, Susan, precisa romper com a tradição familiar tradicional da mulher como base de um lar. No futuro, porém, a educação conservadora que recebeu se manifestará de outras formas, e Susan acabará se rendendo a diversos outros modos de cerceamento social. Mas a mensagem final é altamente feminista.

Cena do filme "La Región Salvaje", do mexicano Amat Escalante - Divulgação - Divulgação
"La Región Salvaje", do mexicano Amat Escalante
Imagem: Divulgação

Horror

O filme mais bizarro do evento, “La Región Salvaje”, do mexicano Amat Escalante, traz mulheres exercendo sua sexualidade de maneira completamente livre. Elas não abrem mão de ter prazer e se recusam a deixar de buscá-lo onde querem. A trama de horror gira em torno de um ser sobrenatural, escondido em uma cabana, que exerce enorme atração sexual sobre os personagens. As mulheres da trama pouco se importam com o que possam pensar sobre elas se relacionarem com um ET: simplesmente se entregam à experiência.

“Quis fazer um filme falando sobre a injustiça, o machismo e a negação à diversidade sexual”, disse o diretor. A atriz Simone Bucio, uma das mulheres empoderadas do longa, contou o que a atraiu no filme: “As personagens femininas têm as decisões sexuais com liberdade. O que, no México, não é algo que possa ocorrer cotidianamente”.

Pôster do filme "Les Beaux Jours d'Aranjuez”, do alemão Wim Wenders - Divulgação - Divulgação
"Les Beaux Jours d'Aranjuez”, do alemão Wim Wenders
Imagem: Divulgação

Eva

“Les Beaux Jours d’Aranjuez”, do alemão Wim Wenders, se centra em dois personagens: um masculino e um feminino. A mulher é uma representação moderna da Eva bíblica. O filme todo se passa em um jardim (que alude ao Éden), em que ambos conversam longamente, explicitando alguns pontos de diferença entre os sexos. Mas a personagem feminina nada tem de sexo frágil -- é muito bem resolvida, inclusive sexualmente.

Por fim, o italiano “Questi Giorni”, de Giuseppe Piccioni, acompanha quatro amigas que viajam para um país desconhecido, em que se conhecerão melhor e solidificarão o sentimento de amizade e de respeito mútuo. Elas representam uma nova geração de mulheres que têm exigido tratamento igual ao dedicado aos homens e o controle sobre suas próprias vidas. Elas sabem que, para isso, precisarão se unir.

E talvez esteja aí uma boa lição para as mulheres do mundo que estão em busca desses mesmos objetivos.

Pôster do filme "Questi Giorni", de Giuseppe Piccioni - Divulgação - Divulgação
"Questi Giorni", de Giuseppe Piccioni
Imagem: Divulgação