Topo

Favorito ao Oscar divide crítica, mas é perfeito para o momento dos EUA

Eduardo Graça

Colaboração para o UOL, em Toronto (Canadá)

13/09/2016 17h03

“The Birth of a Nation”, o filme-sensação deste ano no Festival de Sundance, ovacionado na sessão de gala do Festival Internacional de Cinema de Toronto (Tiff) no fim de semana, mas recebido de forma bem mais comedida nas projeções feitas para imprensa e a indústria cinematográfica nos dias seguintes não é, definitivamente, um novo “12 Anos de Escravidão”, do britânico Steve McQueen, vencedor do Oscar em 2014, cujo tema também era centrado na escravidão nos EUA.

Obra de um diretor de primeira viagem - que também assina roteiro e estrela a produção - o drama histórico também não deve ter sua relevância diminuída por conta da polêmica em torno do processo de violência sexual iniciado em 1999 do qual o diretor Nate Parker foi inocentado, reavivado pela imprensa americana recentemente.

Turner e o co-roteirista do filme, Jean Celestin, foram acusados do estupro de uma colega quando tinham 19 anos e estudavam na Universidade da Pensilvânia. Turner foi declarado inocente, mas Celestin foi condenado pelo crime em 2001. Quatro anos depois, foi absolvido de todas as acusações quando seu novo advogado argumentou que ele não teve acesso a uma defesa eficiente. Turner jamais interagiu publicamente com a família da vítima, que só agora soube-seu que se suicidou em 2012. Em Toronto, o diretor evitou responder questões sobre o tema, afirmando não querer que sua história pessoal "sequestre" o filme.

Polêmica fora da tela à parte, o ambicioso longa se apropria propositadamente do título do clássico de 1915 de D.W. Griffith, primeiro longa-metragem americano apresentado na Casa Branca, saudado por suas inovações tecnológicas e de narrativa, mas devidamente denunciado, ainda à época da administração Woodrow Wilson (1856-1924), como peça revisionista de propaganda de grupos defensores da supremacia branca. Nesse sentido, ainda que somente pelo aspecto propagandístico, pode ser percebido como o outro lado da moeda da produção original, apontada como responsável por inspirar a recriação da Ku Klux Klan na primeira metade do século 20.

Justamente por isso, não foi exatamente uma anomalia a aquisição dos direitos de distribuição do filme por um grande estúdio de Hollywood, a Fox - ainda que por valor recorde para uma produção independente, quase US$ 18 milhões -, em um momento histórico delicado, nos últimos meses do governo do primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos, com um movimento social de gigantescas proporções denunciando a violência sofrida por negros nas mãos da polícia (Black Lives Matter), e um candidato à sucessão de Barack Obama - o republicano Donald Trump - oferecendo uma narrativa de ódio étnico que assusta as principais lideranças da comunidade negra americana.

Escravidão e religião

Com roteiro assumidamente inspirado tanto em “Coração Valente”, de Mel Gibson, quanto no calvário de Jesus Cristo, o novo “The Birth of a Nation” é a primeira produção de peso do cinema americano a colocar no centro de sua narrativa o aspecto religioso do processo da abolição da escravidão nos EUA.

Os protestantes e as denominações evangélicas, a partir de preceitos morais e de liberdade individual, saíram à frente da igreja Católica na denúncia da escravidão. No sul dos EUA, a catequização dos negros, ilustrada no filme pela possibilidade de alfabetização do protagonista através da Bíblia, foi uma das brechas possíveis para a afirmação da identidade negra em uma sociedade ciosa do direito de liberdade religiosa, uma das pedras fundamentais da identidade norte-americana.

Críticos estrangeiros, notadamente europeus, torceram o nariz para um filme idealizado por um indivíduo assumidamente religioso (Parker, como todos os negros retratados em seu filme, é cristão evangélico), cujo personagem central, o líder de uma rebelião de escravos no sul dos EUA em 1831, era um pastor batista que encontrou nos princípios de igualdade do Novo Testamento a razão para uma reação sangrenta que causou a morte de pelo menos 60 senhores de escravos, três décadas antes do início da Guerra de Secessão Americana (1861-65) e do consequente fim da escravidão.

“The Birth of a Nation” tem elenco quase que exclusivamente negro, com destaque para fortes papeis femininos, interpretados por Aunjanue Ellis, Aja Naomi King e Gabrielle Union. A exceção fica com os personagens da ‘casa grande’, como o senhor vivido por Armie Hammer e o terrível capataz de Jackie Earle Haley. Parker diz que fez uma pesquisa histórica apurada e não modificou detalhes da história do escravo Turner, que aprende a ler por conta do interesse - motivado pela fé religiosa - da matriarca da família de plantadores de algodão de quem os pais do menino já eram cativos.

ALERTA DE SPOILER: NÃO LEIA SE NÃO QUISER SABER DETALHES DE "BIRTH OF NATION"


A história segue com as complicações do relacionamento amoroso de Turner com outra escrava e sua exposição à crueldade da escravidão - revelada de forma crua pelo diretor, com cenas explícitas de violência. Com a tímida exceção da matriarca, não há personagem branco simpático ao sofrimento dos negros.

O ato final do filme, em que Parker, depois da brutal repressão a negros da região, entrega-se às autoridades e é enforcado, em meio ao júbilo da população local, toda caucasiana, celebrando em meio às cores dos EUA, é um ato de subversão histórica que já vale o ingresso do filme, especialmente em países que viveram com igual ou maior intensidade a tragédia da escravidão, como o Brasil.

Se deixou de ser o favorito solitário ao Oscar, abrindo espaço este mês para competidores de peso - como “La La Land”,  prêmio de melhor atriz para Emma Stone em Veneza, uma suave ode a Los Angeles e aos clássicos musicais de Hollywood; o soturno “Manchester By the Sea”, com impressionante interpretação de Casey Affleck; e os dois filmes estrelados pela onipresente Amy Adams no Festival de Toronto, “Nocturnal Animals”, de Tom Ford, premiado em Veneza, e “A Chegada”, do canadense Dennis Villeneuve -, “The Birth of a Nation” segue no páreo das premiações, e, mais importante, revelou-se uma peça fundamental na discussão do papel do regime escravocrata na formação da identidade da maior potência do planeta.

O filme estreia nos cinemas brasileiros no dia 26 de janeiro.