Nunca lançado, estreia de Dias Gomes no cinema restaura memória do Rio
Iniciativas de restauro de filmes têm, por objetivo, a preservação da história do audiovisual de um país. No caso de "É um Caso de Polícia", exibido no Festival do Rio na noite desta segunda-feira (10), o trabalho de recuperação do longa também lança luz sobre a memória de sua autora, a italiana naturalizada brasileira Carla Civelli (1921-1977), que deixou sua marca no cinema, no teatro e na TV brasileiros.
Realizado entre 1958 e 1959, mas nunca lançado comercialmente, o longa-metragem, por si só, está cheio de fatos curiosos. "É um Caso de Polícia" marcou a estreia do então dramaturgo Dias Gomes (1922-1999) como roteirista de cinema, e dos atores Glauce Rocha (1930-1971) e Cláudio Correa e Castro (1928-2005) em filmes. Foi rodado em locações em São Conrado, Ipanema e Catete, e no interior da mansão de Pereira Passos, que foi prefeito do Rio no início do século passado.
"É um filme mítico, e com muitos marcos", atesta Myrna Brandão, presidente do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro, entidade que anualmente promove debates e a projeção de obras restauradas no Festival do Rio. "A produção também resgata uma parte da memória urbana da cidade, mostrando vários bairros como eram na época. Tem cenas, por exemplo, que mostram o morro da Rocinha, ainda sem a comunidade atual, coberto pela mata".
Filmado numa época em que reinavam as chanchadas --comédias que parodiavam os hábitos e costumes do brasileiro--, "É um Caso de Polícia" tinha inspiração no suspense policial. O roteiro, desenvolvido por Carla e Dias Gomes, que anos mais tarde se tornaria popular como autor de telenovelas da Rede Globo, como "O Bem-Amado", tem como personagem central Belinha (Glauce), jovem obcecada pelos crimes estampados nos jornais. Certo dia, ela escuta dois homens planejando o assassinato de uma mulher e resolve segui-los, dando início a um série de trapalhadas.
"É um Caso de Polícia" acabaria se tornando o único filme dirigido por Carla, que veio para o Brasil em 1947 com o marido, o diretor de teatro e cinema Ruggero Jacobbi (1920-1981), um dos pioneiros da TV brasileira. A experiência como montadora de Luchino Visconti (1906-1976), um dos mais importantes cineastas italianos do século 20, credenciou-a para trabalhar nos estúdios da época, como a Vera Cruz, onde montou títulos como "Caiçara" (1950), de Adolfo Celli, e o negativo de som de "O Cangaceiro" (1953), de Lima Barreto, que ganhou o prêmio de melhor filme de aventura no Festival de Cannes.
Paralelamente à carreira de montadora e roteirista de cinema, Carla dirigiu e adaptou peças do repertório do Teatro Brasileiro de Comédia, fundado por Franco Zampari, e que tinha em seus quadros atores como Cacilda Becker, Tônia Carrero, Fernanda Montenegro, Walmor Chagas e Jardel Filho. Foi a primeira mulher a dirigir teleteatro, na extinta TV Rio, onde trabalhou na primeira versão de "Cabocla", que teve Glauce Rocha e Sebastião Vasconcelos como protagonistas.
A partir de 1959, Carla assumiu a direção artística dos Estúdios Cine Castro, no Rio, onde colaborou para implementar a dublagem de filmes no Brasil. Nessa área, trabalhou com nomes como Daniel Filho, Hugo Carvana, Nathália Timberg, Milton Gonçalves. Ela nunca mais voltaria a trabalhar na televisão.
"É curioso que, apesar de ter sido uma mulher com influência em diferentes meios, o trabalho da Carla hoje esteja tão esquecido", observa Patrícia Civelli, sobrinha de Carla e detentora dos direitos de “É um Caso de Polícia”, diretora da Memória Civelli, que está recuperando toda a obra de seu pai, o cineasta Mario Civelli. “Uma comissão que autorizava a captação de recursos para a restauração do filme chegou a indeferir nosso pedido com a justificativa de que a diretora não era conhecida por seus pares”.
Um filme inédito
Até hoje não se sabe a razão de "É um Caso de Polícia", produção independente feita com recursos próprios, nunca ter sido lançado. Os atores e membros da equipe sequer sabiam que ele havia sido finalizado. Pensava-se que os negativos originais haviam se perdido em um incêndio na casa de veraneio da diretora, em Cabo Frio. Uma cópia do longa foi encontrada em meados dos anos 1990 e, por iniciativa da Cinemateca do MAM-Rio (Museu de Arte Moderna), passou por um processo de restauração ótica.
A cópia resultante foi exibida no Festival de Brasília daquele ano. "Foi por essa época que o Sebastião Vasconelos e o Renato Consorte, que também atua em 'É um Caso de Polícia', souberam que o filme tinha sido finalizado. Eles foram os únicos da equipe original a assisti-lo na época", lembra Patrícia, que anos mais tarde deu início ao processo de remasterização digital, realizado pela Teleimage. As duas fases foram coordenadas pelo montador Francisco Sérgio Moreira, o Chico Moreira, que morreu no início deste ano.
"A diferença entre as duas restaurações é muito grande. Na versão anterior, recuperada pelo MAM, não se ouvia grande parte dos diálogos, havia muitas partes do filme empenadas. Tinha todos os problemas que se espera de uma cópia vinda de uma matriz que também era um cópia, que já continha uma parte avinagrada e sem negativos originais de som para equalizar os diálogos. A cópia digital corrigiu todos esses problemas", compara Patrícia.
Pioneira
Os créditos iniciais da cópia remasterizada, que está sendo exibida pela primeira vez na maratona carioca, destacam a importância do trabalho de Carla. "É neste momento, em que tanto se valoriza e reivindica a maior presença feminina no setor audiovisual, que Memória Civelli traz a público a obra milagrosa e tecnicamente restaurada do filme 'É um Caso de Polícia', de Carla Civelli, italiana que escolheu o Brasil para viver e o cinema para atuar", diz o texto. "Na pré-história do feminismo, Carla foi presença marcante no cinema brasileiro, como uma das primeiras na montagem e na direção, além de introduzir a dublagem nos filmes nacionais e ter sido a primeira a dirigir novela para a TV. Uma mulher que fez história no cinema".
O filme ganhará uma nova sessão no próximo sábado (15), às 15h, na Cinemateca do MAM. "Neste primeiro momento, queremos divulgar bastante o filme, e falar da importância da preservação e restauração, e também da importância da Carla Civelli", avisa Patrícia. "Ainda vou conversar com o pessoal do Centro de Pesquisadores sobre isso, mas penso que deveríamos exibi-lo também em outros festivais, já que poucas pessoas o viram até agora. Já pensei, inclusive, em lançá-lo comercialmente, o que seria totalmente inusitado. Como temos 400 fotos restauradas e vasto levantamento sobre o histórico da Carla, pensamos também em montar uma exposição fotográfica sobre o trabalho dela, que envolve teatro, dublagem, fotografia e cinema".
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