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Ayahuasca, o chá de santo daime, é celebrado em festival de cinema no Acre

Diretor de "Planta Madre" de Gianfranco Quattrini - Divulgação - Divulgação
Diretor Gianfranco Quattrini experimentou a ayahuasca antes de começar a filmar
Imagem: Divulgação

Carlos Minuano

Colaboração para o UOL

18/10/2016 07h00

Apelidada de "chá do santo daime", a ayahuasca está cada vez mais pop. Não é a toa que virou tema da primeira edição do Ayafilm, um curioso festival internacional de cinema todo dedicado a produções sobre a bebida psicodélica usada a milhares de anos em rituais e pajelanças de indígenas da região amazônica.

A mostra, que fica em cartaz até o próximo sábado (22) em Rio Branco, no Acre, apresenta uma vasta e diversa produção audiovisual. Na programação há desde documentários até obras mais inusitadas, como a ficção "Planta Madre", um road movie sobre a jornada xamânica de dois velhos roqueiros argentinos na selva peruana.

Primeiro no mundo a abordar exclusivamente o polêmico e controverso chá amazônico, o festival de cinema acontece dentro da segunda Conferência Mundial de Ayahuasca, organizada pela fundação espanhola de pesquisa Iceers (International Center for Ethnobotanical Education, Research e Service). Na essência, ambos têm o mesmo objetivo: desfazer preconceitos e equívocos sobre o consumo dessa substância. Cada vez mais globalizada, e com respaldo de pesquisas científicas, a bebida psicodélica avança como possibilidade terapêutica e para fins religiosos.

Embora seu uso ritualístico seja permitido em vários países, como Brasil e Estados Unidos, não faltam opiniões contrárias a expansão do uso da ayahuasca, que em alguns países esbarra em questões legais. Um exemplo é a recente prisão um terapeuta brasileiro na Rússia por porte do chá. Esse e outros aspectos em torno da bebida estarão em debate no centro do evento na Amazônia, na conferência e no festival de cinema, que reúne indígenas, cientistas, artistas e religiosos de diversos países.

De Ibiza para o Acre

Debates e filmes passeiam sobre temas que vão do xamanismo até questões de gênero, aspectos culturais, legais e científicos. A ideia de organizar uma mostra audiovisual dentro da conferência surgiu na primeira edição do evento, realizada há dois anos em Ibiza, na Espanha. "Apresentamos lá uma pequena mostra de filmes relacionados com o chá, mas não foi estruturado como um festival de cinema", diz o curador do AyaFilm, o cineasta espanhol, Joan Manel Vilaseca.

"Esse é o primeiro festival de cinema sobre a ayahuasca e, sem dúvida, o único a fazer isso de forma explícita", acrescenta. Para ele, o evento, que reúne 36 filmes --18 longas e 18 curtas-- de diferentes países e com abordagens distintas, é uma amostra do crescimento do interesse mundial pelo assunto. "Durante o período de inscrição recebemos mais de 50 produções".

Road movie psicodélico

Vilaseca destaca o road movie psicodélico "Planta Madre", do cineasta peruano, radicado na Argentina, Gianfranco Quattrini. "Foi uma surpresa. É um filme inteligente e divertido que soube incorporar a ayahuasca em uma história de ficção". No longa, que mistura rock argentino e cumbia amazônica, dois músicos argentinos, antes famosos, mas em uma fase decadente, se mandam para Iquitos, no Peru, guiados por um livro antigo, em busca da ajuda do misterioso chá amazônico.

Antes de começar a filmar, Quattrini resolveu experimentar a ayahuasca na região. "Percebi que era importante eu mesmo viver a experiência para entendê-la melhor". Participaram do longa xamãs reais e respeitados da selva peruana, como Agustin Rivas Vásquez e Dona Cotrin. "Planta Madre" --coprodução entre Argentina, Peru e Itália, filmado em Buenos Aires e na Amazônia peruana-- demorou sete anos para ficar pronto por problemas de financiamento.

Burroughs e o "puro barato"

A balada mítica dos hermanos roqueiros é fictícia, mas o flerte entre a ayahuasca e nomes conhecidos do mundo das artes já acontece de verdade há décadas. Em 1953, o escritor beatnik William Burroughs (1914-1917) se mandou para a Colômbia, segundo ele relata nas últimas páginas de seu livro "Junkye", "em busca do puro barato que expande a mente, ao contrário da heroína que a estreita". As experiências que teve por lá foram parar no alucinado diário de viagem "Cartas do Yagé", e também em documentário.

Trechos desse pouco conhecido filme chamado "Ayahuasca", narrado por Burroughs, talvez um dos primeiros sobre o chá amazônico, pode ser conferido em "Takiwasi: House of Healing", outro destaque da mostra Ayafilm. O documentário dirigido pelo brasileiro Ricardo D'Aguiar e Christopher Zahlten faz um mergulho no trabalho do centro Takiwasi, centro de pesquisa que mistura xamanismo indígena amazônico com técnicas de psicologia no tratamento de dependência química severa e depressão, em Tarapoto, no Peru.

Sem preconceitos

"Meu objetivo foi procurar desmistificar as medicinas tradicionais indígenas, desfazer preconceitos e abrir uma janela para outras possibilidades de tratamento da drogaadicção", afirma D'Aguiar. Depois do festival no Acre, o diretor conta que embarca novamente para mais uma aventura cinematográfica amazônica, desta vez ao lado da badalada e premiada diretora americana, Ellen Spiro, pré-selecionada ao Oscar no ano passado.

Segundo D'Aguiar, será um documentário sobre o mundo das plantas sagradas através dos olhos da pesquisadora brasileira Beatriz Labate, renomada no campo da antropologia social, e autora de diversos livros sobre ayahuasca e drogas. "O filme vai acompanhar encontros dela com cientistas que também pesquisam o tema, e mostrar um pouco de sua jornada pessoal, do contato com esse mundo dos psicodélicos, e as transformações que isso trouxe para sua vida e em sua forma de fazer ciência", explica o diretor.