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Deixa ela sorrir em paz: Estrela de filme, menina trans só quer vida normal

Renata Nogueira

Do UOL, em São Paulo

02/12/2016 07h00

Ela é jovem, linda, sorridente. Ela transborda leveza, como deve ser para toda adolescente de 18 anos. Mas Anne Celestino é uma menina trans. E graças à falta de conhecimento de uma boa parte da sociedade ainda muito preconceituosa, sua história nem sempre foi assim.

Nascida e criada no Recife, Anne sempre soube que era uma mulher. Porém, viveu quase 16 anos aprisionada em um corpo em que não se sentia confortável. Pouco mais de dois anos depois de se revelar o que ela realmente é, Anne parte para outro desafio. A garota nascida e criada no Recife será protagonista de um filme voltado para o público adolescente, “Alice Júnior”.

“É um filme muito delicado que aborda questões que muitas vezes as pessoas sabem que existem, mas preferem ignorar. A transexualidade ainda é um tabu muito grande no Brasil. Abordando da forma como o filme vai fazer, ajudará tanto as pessoas trans a se reconhecerem como os pais dos trans e também os que têm mentes fechadas a olhar de outro jeito para esta questão”, conta Anne em entrevista ao UOL.

A menina conseguiu o papel ao ser avisada por amigos de uma postagem no Facebook que buscava adolescentes transexuais para estrelar um filme. “A gente já tem poucas pessoas trans no ramo da atuação, quanto mais adolescentes. Eles queriam pessoas de Curitiba, mas mesmo assim eu resolvi tentar”. Deu certo, e desde maio de 2016 Anne soube que o papel de "Alice Júnior" seria dela.

Sobre o papel, Anne explica. “Ela tem as mesmas dificuldades de ser uma garota adolescente comum, mas também tem um que a mais de ser trans. Vão ter cenas tanto delicadas, como de uma jovem comum...”, adianta sobre a história, que deve iniciar as filmagens em março de 2017.

Entre as dificuldades que encontrou por ser trans, Anne destaca como uma das mais doloridas a forte rejeição por grande parte das escolas particulares da capital pernambucana (ela só foi aceita em duas das dezenas disponíveis). Para completar seus estudos, a jovem precisou se render ao supletivo, sugestão de um dos diretores que a atenderam ao lado de sua mãe em busca de uma instituição para que e menina apenas pudesse estudar como qualquer outra pessoa de sua idade.

Ela lembra com tristeza dos repetidos episódios que ocorreram logo após seu intercâmbio para os Estados Unidos. “Mais uma vez foi me dito que meu lugar não era na escola, e sim na rua me prostituindo. Sabe o que é uma pessoa dizer que você não pode estar naquele ambiente simplesmente por você ser o que você é?”.

Intercâmbio e o “nascimento” de Anne

Quando completou 15 anos, Anne pediu aos pais uma viagem para os Estados Unidos. O destino não era a Disney, como o sonho de várias meninas da mesma idade. Ela precisava debutar como mulher, mostrar quem realmente era para uma sociedade que talvez a julgasse menos que a do Recife. Deu certo... Até certo ponto.

Foi nos Estados Unidos, primeiro em Seattle, no Estado de Washington, e depois no Michigan, que ela comprou as primeiras roupas femininas e maquiagens. “Eu nem sabia como se usava uma base”, lembra. Mas apesar de conseguir se libertar em um novo país, até lá encontrou barreiras.

Morando com um casal de homens gays, sofreu transfobia por parte de um deles. “Até dentro da comunidade LGBT a gente é muito invisível”, lamenta. Acabou trocando de família e ainda assim não conseguiu concluir seu ano de intercâmbio. “Não achei nenhuma outra família nos Estados Unidos inteiros que aceitasse uma intercambista trans.”

A atriz Anne Celstino posa com Gil Barone, diretor do filme - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A atriz Anne Celstino posa com Gil Barone, diretor do filme
Imagem: Arquivo pessoal
Em quase todos os seus vídeos no YouTube e postagens no blog, Anne faz questão de lembrar que a expectativa de vida de um transexual no Brasil é de 35 anos, enquanto a de qualquer outra pessoa vai muito além dos 70. “Todas as pessoas trans sofrem transfobia. Algumas sofrem menos, outras sofrem mais”.

Anne teve a sorte de nascer em uma família privilegiada e que soube aceitar sua condição. Afinal, é a falta de estrutura familiar que faz com que muitos transexuais acabem na rua e na prostituição. Mesmo assim, ela revela que passou por todo o processo de enfrentar psicólogos e rejeições até mesmo de pessoas próximas que não viam ou não podiam aceitar o que sempre foi muito claro para ela: sua condição de mulher.

Mas essa não é a história que você vai ver em “Alice Júnior”. O filme é uma comédia romântica pós-moderna. Alice, vivida por Anne em sua estreia no cinema, é uma adolescente que se muda para uma cidadezinha no sul do país e lá tenta realizar seu maior desejo: dar o primeiro beijo.

O diretor poderia ter optado por seguir pelo caminho mais simples, de contar a própria história de Anne, muito rica mesmo que ainda tão recente. Mas o roteiro já estava pronto antes mesmo de encontrar sua estrela. Faltava apenas o destino agir e promover o encontro de duas pessoas tão diferentes com mentes tão parecidas.

“Alice Júnior” tem verba para estrear como uma produção de TV. Mas a ideia do diretor, Gil Baroni, é levar o filme aos cinemas e atingir o maior público possível, principalmente os jovens.

Para isso, uma campanha de crowdfunding, espécie de vaquinha online, busca arrecadar o que falta para que a produção chegue às telonas. “Ter um filme vai ser uma coisa bem representativa. E são poucas as coisas representativas no mundo trans”, destaca a protagonista.

“Eu gosto da mulher que eu sou porque eu lutei para ser ela, para me tornar ela. Eu não sou uma pessoa totalmente empoderada, mas eu estou nesse caminho. Alice Júnior não é a história de uma vítima. É a história de uma heroína.”

Anne conta mais episódios de sua história tanto em seu blog (tras-tornada.blogspot.com.br), criado em fevereiro deste ano, como em um canal do YouTube (Trans-Tornada).

As ferramentas são uma espécie de retribuição ao formato que a ajudou a esclarecer sua condição. Foi um documentário no YouTube que esclareceu sua condição para ela mesma e a família aos 12 anos de idade. Seis anos depois ela repete a dose, agora como protagonista.