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Baseado em "Pornô", novo "Trainspotting" debocha do original

Bruno Ghetti

Colaboração para o UOL, em Berlim

10/02/2017 17h46

A primeira cena de “T2 Trainspotting”, continuação do célebre filme de 1996, de Danny Boyle, mostra o personagem de Ewan McGregor correndo na esteira. Nada a ver com o junkie pálido e de saúde fragilizada do filme anterior; agora ele está mais corado e ganhou corpo (até alguma barriguinha). Mas a pose de quarentão saudável não dura muito: em questão de segundos, ele leva um tombo e se esborracha – por mais em forma que esteja, não é tão apto aos aparelhos de ginástica como os colegas de academia vintões.

É com esse mesmo tom de auto-deboche e brincando com a decadência física causada pela passagem do tempo que “T2 Trainspotting” arrancou risadas do público em sua exibição na tarde de hoje, no Festival de Berlim. Exibido fora de competição, o longa ainda assim era um dos mais aguardados do evento alemão. MacGregor não foi a Berlim, mas assim mesmo, vários fãs do filme faziam fila no clima berlinense abaixo de zero atrás de autógrafos de algum dos outros atores ou mesmo de Boyle.

Espera

“T2” se baseia em “Pornô”, livro do mesmo autor de “Trainspotting”, Irvine Welsh, lançado em 2002. “Tentamos por muito tempo fazer essa adaptação, mas não havia condições para isso. Foi preciso esperar”, contou Boyle, referindo-se sobretudo ao fato de que o elenco precisaria envelhecer mais para que o livro ganhasse veracidade na versão para o cinema.

A trama da continuação se passa 20 anos após os eventos do filme de 1996, que marcou fortemente uma geração de jovens por mostrar (de maneira que transitava entre o cru e o “cool”) a que ponto o vício em heroína pode levar o ser humano. Agora, Mark Renton (McGregor) mora em Amsterdã e está totalmente afastado das drogas. Apesar de saudável, nem tudo vai bem em sua vida. Quando sua mulher o abandona, ele decide voltar à Escócia natal para reencontrar os ex-amigos e colegas de vício. Os reencontros guardam alguma emoção, mas talvez mais ainda mágoas, sobretudo pela maneira como Renton foi embora no fim do longa anterior (levando quase todo o dinheiro que haviam conseguido após uma transação envolvendo drogas).

Em termos de estilo, o filme não difere muito da versão de 1996. Boyle repete aquele mesmo gosto pronunciado pelo fluxo de imagens à la videoclipe, cheio de cores, distorções e movimentos de câmera “espertos”. É visualmente algo bem próximo do primeiro filme, só que adaptado ao que de mais moderno surgiu na tecnologia do cinema desde então.

“Muitas coisas mudaram no modo de se fazer cinema daquela época para cá. O mais importante é que as câmeras ficaram muito menores”, diz Boyle “Com os aparelhos de hoje, você consegue captar em uma cena alguns detalhes que antes você sequer poderia imaginar enquanto escrevia o roteiro do filme. E também é possível acessar as performances dos atores de maneira diferente.”

Jonny Lee Miller, intérprete de Simon (o loiríssimo “Sick Boy” do primeiro filme, que é o melhor em cena nesta continuação), concorda. “Agora, é possível atuar sem pensar naquelas máquinas na sua frente. Para os atores, significou um enorme ganho de liberdade”, diz.

Referências

Em vários momentos, imagens do primeiro filme ressurgem na tela. Por mais que o novo “Trainspotting” tenha vida autônoma – nem é preciso ter visto o primeiro para se divertir ou compreender o que se passa –, ele revisita o anterior quase todo tempo. “Você é um turista da própria nostalgia”, diz a certa altura Simon para Mark. O mesmo pode ser dito sobre o filme, obcecado pelo próprio passado, muito embora com a total noção de que não tem chances de repetir o êxito do longa dos anos 1990.

“O primeiro filme juntou um ótimo tema e um roteiro excelente com o momento exato, o zeitgeist perfeito. Não dá para conseguir isso de novo, foi único”, diz Miller. “Eu mesmo me interessei pelo projeto não porque seria ‘uma continuação’... Até porque parece mais uma ‘post-mortem’”, brincou.

A grande vantagem de “T2” é exatamente essa: Boyle não se leva tão a sério e nem parece tão preocupado em ser “cool” ou marcar uma geração. Se o novo filme insiste em uma pirotecnia formal que tem parentesco com a da primeira versão, é antes por coerência que por uma tentativa de fazer um longa do mesmo nível e importância; Boyle sabe o que está fazendo.

Brexit

O longa foi rodado bem na época em que o Reino Unido optava pelo Brexit, o afastamento dos britânicos da União Europeia. A Escócia, locação das filmagens, foi um dos poucos locais onde se optou pela permanência no bloco.

“Meus filmes não são intencionalmente políticos, embora muita gente os perceba assim”, diz Boyle. “Foi um choque na Escócia a opção pelo Brexit [enquanto estávamos filmando]. Vai afetar mais a vida dos meus filhos, que cresceram como europeus. Mas acredito que, se fosse hoje [a votação], a maioria dos britânicos optaria por permanecer”, diz.

“Tradicionalmente somos uma cultura progressista. Acho que a Escócia se beneficiou de todos esses anos de Europa compartilhada”, diz o ator Ewen Bremner, que no filme é o atrapalhado Spud. “É interessante perceber isso, por exemplo, no caso de Mark, que era alguém que cresceu em um gueto em Edimburgo e, um dia, resolveu ir embora tentar a sorte em Amsterdã, sem problemas”.

Nesta Berlinale tão politizada, era esperado que a imprensa fizesse tantas perguntas de caráter político, mas Boyle evitava prolongar as respostas. Sentia-se bem mais à vontade em se ater ao que seu filme tinha de específico no tratamento dos personagens. “O filme é sobre a angústia do avançar da idade, é sobre questões envolvendo a masculinidade. Era essencial que os atores trouxessem seus próprios conflitos pessoais com essas questões aos personagens. Fico feliz que tenhamos conseguido”, concluiu o diretor.