Origem do brasileiro: "Vazante" mostra que século 19 não está tão longe

Coube ao Brasil uma das grandes honras deste início de Festival de Berlim 2017: "Vazante", filme de Daniela Thomas, inaugurou na sexta-feira (10) a mostra Panorama, a segunda mais importante do evento alemão. A escolha dele por parte da Berlinale não foi à toa: o longa é cheio de temas fortes e tem potencial para a controvérsia. Passado no século 19 e abordando temas como escravidão, opressão feminina, pedofilia e abuso sexual, o longa da diretora carioca destaca a força das imposições sociais daquela época que, de certo modo, ainda hoje ressoam na nossa cultura.

"Quis fazer um filme que investigasse a origem do brasileiro, esse povo tão peculiar", diz Daniela Thomas ao UOL. "O nosso passado me fascina. O cinema americano, por exemplo, te dá infinitas respostas sobre o que foi aquele país que gerou o atual. No brasileiro, não há muito isso. Eu quis ir em busca de uma ideia do que seriam as matrizes do nosso desejo, da nossa alma."

A cineasta faz essa busca por meio de uma trama passada em 1821, um ano antes de o Brasil se tornar independente de Portugal, em uma grande fazenda de Minas Gerais. Ali, o português Antônio (interpretado pelo excelente Adriano Carvalho) abandona a exploração de minério e investe na agropecuária, com trabalho de mão de obra escrava recém-chegada da África. Após perder a mulher e o primeiro filho durante o parto, Antônio procura alguém que possa lhe dar um herdeiro. E a escolhida é uma garota de 12 anos.

"Meu pai me contou uma história de um tio-avô de 45 anos que se casou com uma menina de 12 anos, e que demorou três anos para menstruar. Ele a esperou. Enquanto isso, trazia bonecas para ela. Eu achei essa história ao mesmo tempo grotesca e fascinante, principalmente por pensar que, alguns anos atrás, era aceitável um homem tão mais velho se casar com uma menina", diz Thomas.

Entre a Casa Grande e a Senzala

"Vazante" é um grande vai e vem entre a Casa Grande e a Senzala. Vê-se o drama dos escravos e a forma desumana como eram tratados (há cenas angustiantes de castigo corporal), mas também o de uma menina que acaba de se casar, precisando se submeter ao tédio extremo na ausência do marido e a todas suas vontades quando ele está presente. Mas o roteiro não se contenta em vilanizar por completo o homem branco europeu: ele também tem lá os seus conflitos --na verdade, ele deseja uma escrava, mas casa-se com a jovem branca também por imposição social. "Vazante" é um filme sobre submissões, de uma maneira geral.

Filmado em preto e branco, só com luz natural, o longa marca a estreia sozinha de Thomas atrás das câmeras --todos os seus outros filmes eram em trabalho de codireção, como "Terra Estrangeira" (1996, com Walter Salles) e "Insolação" (2009, com Felipe Hirsch). E ela não demonstra medos em sua estreia solo: o filme é de um perfeccionismo que poucos ousariam tocar um projeto tão ambicioso adiante. Essa é a força de "Vazante", mas também seu problema: a diretora quer fazer um produto tão completo que, muitas vezes, se torna um tanto autocongratulatório.

Mas o filme se impõe, sobretudo como um caso raro na dramaturgia nacional de meticulosidade na pesquisa para a recriação de uma época. Não apenas no que diz respeito aos cenários ou figurinos: tudo em "Vazante" parece de um outro tempo, do gestual dos atores (ao caminhar, comer ou se portar socialmente) ao próprio tempo dos acontecimentos (arrastado, tedioso).

O filme parece um documentário do estilo de vida no Brasil rural do século 19: apesar de lento, é sempre fascinante. Para aumentar a autenticidade, muitos dos escravos são interpretados por quilombolas, descendentes de escravos locais, e os recém-chegados da África são vividos por refugiados de Mali em São Paulo. "Eu queria propor uma imersão profunda naquela época. Eu fiz uma pesquisa obsessiva nesse sentido, com a ajuda de historiadores, como a Mary del Priore, que nos deu informações e detalhes de como era a vida privada das pessoas naquele tempo, como elas se relacionavam", diz a cineasta.

Realidade assustadora

Se tem o Brasil rural do início do século 19 impregnado na alma, há algo de assustadoramente atual no filme. Mais até do que a própria diretora imaginava: o projeto surgiu em 2009, quando a realidade então otimista do Brasil era outra. Ser lançado em uma época em que a direita ressurge com força em vários lugares do mundo contribui --e muito-- para a sua canhestra atualidade. "É uma ironia terrível. É muito mais grave a situação do país hoje. O filme ganhou força, mesmo que sem querer", reconhece Thomas. 

"O que eu queria [com o filme] era celebrar que estamos cada vez mais longe daquela situação. Mas acabou virando um alerta, porque estamos nos aproximando de uma coisa muito parecida. Nossa matriz está aí, ainda, em cada Ministério, deputados e senadores. Continuamos um país patriarcal."

Na primeira sessão para a imprensa em Berlim, "Vazante" foi aplaudido ao final, mas a cineasta diz que está pronta para qualquer tipo de reação a partir de agora. "O receio a gente tem todo tempo, porque se está lidando com questões que ainda não foram bem resolvidas. E ainda mais porque hoje em dia os nervos estão à flor da pele, os preconceitos estão muito à tona. Temos o [presidente dos EUA, Donald] Trump de um lado, um governo que considero golpista de outro. É um momento de reflexão, acho que precisamos repensar tudo".