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"Não esperava que, aos 77 anos, eu voltasse às ruas", diz Antonio Pitanga

Camila observa o pai conversar com Ângela Leal: "Descobri muita coisa no set" - Divulgação
Camila observa o pai conversar com Ângela Leal: "Descobri muita coisa no set" Imagem: Divulgação

Tiago Dias

Do UOL, em São Paulo

06/04/2017 17h02

Antonio Pitanga gosta de dizer que não é um negro nos movimentos, mas um negro em movimento. Com a vontade de documentar a vida de um dos atores mais importantes do cinema brasileiro, o cineasta Beto Brant entendeu o recado: “Então vá atrás do seu movimento e nós vamos atrás de você”.
A jornada do baiano de 77 anos é o que move “Pitanga”, que chega nesta quinta (6) aos cinemas.

Além de abrir portas e revisitar amigos e amores do passado, o ator resgata sua importância dentro da ideologia do cinema novo e remonta a construção de sua consciência social e política através da arte.

No filme, ao relembrar dos anos 1960, constata: “Na minha época, os negros estavam em posições mais estratégicas do que hoje”. A fala é abrangente, mas sua visão na dramaturgia é clara: “Naquela época, éramos poucos e os espaços eram poucos. Hoje você tem uma turma boa demais, mas cadê a família? Esporadicamente aparece”, observa em entrevista ao UOL.

Peça central de um Brasil oprimido, e ainda em construção, Pitanga tomou emprestado o sobrenome artístico de seu primeiro personagem no cinema, em “Bahia de Todos os Santos”. A partir dali, se tornaria uma espécie de cocriador de obras fundamentais de Cacá Diegues (“A Grande Cidade”, “Ganga Zumba”) e Glauber Rocha.

Antonio Pitanga em cena de "Barravento" (1962) - Divulgação - Divulgação
Antonio Pitanga em cena de "Barravento" (1962)
Imagem: Divulgação
A longeva parceria com o conterrâneo se deu logo no primeiro longa, “Barravento”, em que vive Firmino, pescador que tenta livrar sua aldeia do domínio religioso. A figura do personagem, um negro de peito aberto, volta à vida na abertura do documentário e é uma síntese do ator. “Ele materializa o crescimento de um ator, com uma proposta de liberdade”, diz. 

Filha e codiretora do projeto, Camila Pitanga diz que a jornada a fez repensar suas escolhas políticas e artísticas, e descobrir mais histórias da faceta galanteadora do pai: “A conversa com a [atriz] Ângela Leal [mãe de sua amiga, Leandra Leal] me surpreendeu. Eu não sabia que eles tinham sido namorados. Descobri no set”. A lista dos romances é farta: Ítala Nandi, Zezé Motta, Tamara Taxman e Maria Bethânia.

Mas é sua personalidade combatente e afetiva que ganha mais espaço. Ele conta dos planos de dirigir um filme sobre a Revolta dos Malês, mobilização dos escravos muçulmanos na Bahia de 1835, símbolo de combate à sociedade escravista, e resume sua posição em dias de agitação política: "Não esperava que, aos 77 anos, eu voltasse às ruas".

Pitanga e Maria Bethânia: Romance em Salvador - Divulgação - Divulgação
Pitanga e Maria Bethânia: Romance em Salvador
Imagem: Divulgação

UOL - No cinema novo você se tornou um dos primeiros atores negros a ser protagonista.

Antônio Pitanga - Naquela época, todas essas manifestações culturais estavam à margem da sociedade. É que nem jogar futebol, era para pobre. A gente não tinha uma classificação, uma profissão de artista. Era prostituto.

Você tem noção da sua importância no rompimento dos estereótipos sociais no Brasil?

Eu tenho noção de ter demarcado, através do movimento, uma afirmação cultural. Da minha importância nesse conjunto de obras e pensamentos. Não era um ator que entra e sai. Eu estava conectado com o que estava acontecendo no mundo. Malcolm X, Martin Luther King, Panteras Negras, assassinato de Patrice Lumumba, primeira negra que entra na universidade, embargo de Cuba, ditadura de Dutra, o suicídio de Vargas, o golpe de 64. O mundo estava estagnado há quase 150 anos. Dá uma reviravolta a partir do final da década de 1950. Camisinha, pílulas, direitos humanos, o voto da mulher, a consciência machista. Esses componentes estão esculpindo uma criatura humana, e por acaso eu, que vem de uma família muito pobre.

Você sofreu racismo em alguns desses trabalhos?

Não porque o trabalho que estava proposto não era isolado. Eu não era um convidado. Eu fazia uma coautoria do projeto, como profissional, como cultura, como afirmação de um povo. Para entender minha linguagem, eles me deram asas. Claro, fora da arte, o indivíduo que entra pela porta da frente, sempre teve, mas eu sempre peitei. Fui estudar no colégio Ipiranga, onde estudou Castro Alves e só tinha branco, mas isso nunca me intimidou. Paguei, estudo. Eu nunca tive essa preocupação com quem quer me barrar. Eu respondo e continuo minha caminhada. O ‘não’ não é meu, é dele.

No filme você constata que na sua época os negros desempenhavam papéis mais estratégicos? Como vê a presença dos negros nas artes hoje?

Com certa preocupação. Naquela época, éramos poucos e os espaços eram poucos. Hoje você tem um universo muito maior e atores, como Camila, Lázaro [Ramos], Rocco [Pitanga], Sharon Menezes, a Roberta, a Juliana Alves, você tem uma turma boa demais, mas cadê a família? Se você olhar para trás e ver um [Francisco] Cuoco, ou um Tarcísio [Meira], na minha época, a evolução desses caras na dramaturgia, quando aparecem, eles têm filhos, netos e bisnetos. Mas quando aparece uma Camila, uma Sharon, uma Taís, cadê a família? Esporadicamente aparece. É uma família brasileira. São 205 milhões de brasileiros, dos quais somos 55% de negros, segundo o IBGE. Nas ruas, nas esquinas, nos bares, você encontra o país. Na literatura, na dramaturgia, você não encontra. Meu ‘seis por meia dúzia’ está aí. Não cresceu. Continua o Pitanga sozinho lá. Quando eu falo não é na questão do comparativo mesquinho, pobre. É constatando a matemática.

No meio da tensão política do impeachment, sua mulher, a deputada Benedita da Silva (PT-RJ), foi fotografada fazendo compras em um supermercado como “prova” de que estaria ignorando a crise econômica. Como vê a política atualmente?

Com uma diferença: eu envelheci. Meus amigos, uma parte deles morreram, outros enlouqueceram, outros envelheceram que nem eu. E nós estamos vivendo uma situação idêntica a daquele Brasil que a gente queria. Preconceito, golpe, ditadura, direitos humanos. As pessoas estão matando o outro por causa de ciúme, tênis. Nós nos distanciamos de nós mesmos lá atrás. Hoje a juventude tem uma ferramenta que é as redes e não se aproxima. Estamos vivendo uma época preocupante.

Isso te choca?

Muito. Não esperava que aos 77 anos eu voltasse às ruas. Estou voltando às ruas, fazendo caminhada, passeata, que eu não posso mais fazer. Quem tem que fazer são os jovens. Vou e acompanho. É triste. A Benedita não pode comprar uma carne? Vai todo mundo no mesmo cesto. Se a Benedita estivesse na Lava-Jato ela já teria sido presa. Negro é que tem que ser algemado.

No filme você trata seus personagens sob a ótica política. Qual foi seu maior ato político?

Foi sair pela porta da frente com três filmes para exibir às grandes lideranças africanas para mostrar o comportamento dos negros no Brasil – “Esse mundo é meu”, “Ganga Zumba” e “Barravento”. Morei dois anos na África, primeiro para saber que África era aquela que eu tinha vindo, porque minha África o Rui Barbosa tinha queimado. Foi meu maior ato político sair em plena era Castelo Branco, 15 de abril de 1964, pela porta da frente em missão cultural. Meus amigos que bancaram isso podiam ter perdido os cargos.

Como você voltou?

Voltei ligado. Eu estou ligado.

Zé Celso e Pitanga em cena do documentário - Divulgação - Divulgação
Zé Celso e Pitanga em cena do documentário
Imagem: Divulgação