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Sonho inspirou terror nacional que mistura lobisomem, Disney e Stephen King

Cena do trailer de "As Boas Maneiras" - Reprodução - Reprodução
O lobisomem de "As Boas Maneiras"
Imagem: Reprodução

Natalia Engler

Do UOL, em São Paulo

14/08/2017 15h47

Imagine um lobisomem à solta em São Paulo. Agora imagine uma atmosfera que remete aos primeiros --e mais sombrios-- filmes de Walt Disney, como “Branca de Neve”, e uma história inspirada em Stephen King. Foi com algo próximo a essa mistura que o filme “As Boas Maneiras”, de Juliana Rojas e Marco Dutra, conquistou o prêmio especial do júri do prestigioso Festival de Locarno, na Suíça, no último sábado (12).

“É uma fábula, um conto de fadas que fala de maternidade e laços afetivos e familiares, em um universo levemente gótico, é uma fábula de lobisomem”, define o codiretor Marco Dutra, em entrevista ao UOL, sem, porém, revelar mais detalhes da trama, para que o público possa ter “uma experiência mais virgem” ao assistir ao longa.

A sinopse, que entrega pouco, diz apenas: Clara (Isabél Zuaa) é uma enfermeira da periferia de São Paulo contratada para ser a babá do filho que Ana (Marjorie Estiano) está esperando. Uma noite de lua cheia provoca uma inesperada mudança de planos e Clara assume a maternidade de uma criança diferente das outras.

O longa já tem presença garantida em mais dois festivais internacionais, ambos dedicados ao terror --L’Étrange, em Paris, em setembro, e o Festival de Sitges, em Barcelona, em outubro--, mas deve estrear nos cinemas nacionais só em 2018. Antes disso, porém, é provável que “As Boas Maneiras” entre na seleção do Festival do Rio ou da Mostra de São Paulo.

Marco Dutra, a atriz Marjorie Estiano, Juliana Rojas e a atriz Isabel Zuaa apresentam "As Boas Maneiras" no Festival de Locarno, na Suíça - Pier Marco Tacca/Getty Images - Pier Marco Tacca/Getty Images
Os diretores Marco Dutra (esq.) e Juliana Rojas entre as atrizes Marjorie Estiano e Isabel Zuaa (dir.) no Festival de Locarno
Imagem: Pier Marco Tacca/Getty Images

Sonho

“A ideia partiu de um sonho que eu tive, sobre duas mulheres criando uma criança estranha, e a gente começou a falar sobre aproximar isso do folclore do lobisomem desde o começo”, conta Dutra. Ele, que em seus filmes anteriores em parceria com Rojas (“Trabalhar Cansa”) e nos trabalhos solo (“Quando Eu Era Vivo”) já explorou o sobrenatural, desta vez quis aproximar o gênero do horror de “um misticismo brasileiro que eu reconheço em muitas partes do Brasil, que me parece bem interessante para abordar em um filme de gênero”.

Se nos filmes anteriores o sobrenatural irrompe após muita tensão, a diferença principal em “As Boas Maneiras” é que o lobisomem está ali desde o começo, inclusive no trailer. “A diferença em relação aos filmes anteriores é que já é um filme bem fantástico desde a primeira cena, enquanto em ‘Trabalhar Cansa’ estávamos falando de relações de trabalho, de gênero, e o horror vai nascendo disso. Nesse filme, o horror veio de cara, junto com a fábula”, explica.

Stephen King

A vontade de trazer um personagem tão marcante do terror para uma história nossa, segundo Dutra, é antiga, e teve influência do mestre do horror Stephen King, que em seu livro “Dança Macabra” identifica três arquétipos básicos do gênero: o vampiro, a "coisa" e, claro, o lobisomem.

“Como eu gosto muito de Stephen King, sempre quis explorar isso, que geralmente tem uma origem europeia. Mas o lobisomem é uma coisa que é daqui também, que veio da Europa e se misturou com crenças daqui. Mas só faria sentido fazer esse filme com a história certa, e essa história se configurou desde o começo como uma história de lobisomem”, conta o cineasta.

Como nos filmes anteriores da dupla Dutra e Rojas, aqui o lobisomem também serve de metáfora para algo nada fantástico: “A gente falou muito sobre o corpo, porque no cerne do lobisomem está a questão da metamorfose --entre um corpo humano racional e um corpo instintivo irracional. Falamos muito sobre o embate entre esses dois aspectos na gravidez, na relação mãe-criança, homem-mulher etc.”, diz.

Disney

Ao lado das influências mais, digamos, gótica, vem outra que pode parecer curiosa, mas faz todo sentido: os clássicos contos de fada produzidos por Walt Disney.

“Eu e a Juliana gostamos muito de alguns filmes do Disney, fez parte da nossa infância e também da nossa formação como cineastas. Acabamos sempre voltando a filmes como ‘A Bela Adormecida’, ‘Pinóquio’, ‘Dumbo’, ‘Bambi’, ‘Branca de Neve’”, conta o cineasta, citando, justamente, algumas das produções mais sombrias do estúdio do Mickey.

“São filmes muito fortes. A questão deles serem ‘dark’ é que na verdade são honestos, respeitam muito o material no qual estão bebendo. ‘Branca de Neve’, por exemplo, é um musical, tem canções, tem um visual marcante, mas tem uma coisa sombria acontecendo, é sobre inveja, sobre um sentimento muito adulto. São filmes feitos por adultos, mas que não tratam as crianças como menores”, comenta, lembrando que as animações também remetem a coletâneas folclóricas que começaram a aparecer na Europa no século 17 e 18, como a dos Irmãos Grimm, e que marcaram muitas infâncias.

Além da temática, a influência de Disney está presente no visual do filme, que usa uma técnica tradicional de trabalhar o fundo, o horizonte e as paisagens de forma artesanal, feita à mão, e a história fantástica também exigiu um maior investimento nos efeitos especiais, feitos por três empresas --duas brasileiras e uma francesa--, com um orçamento de R$ 7,7 milhões, bem acima dos R$ 2,2 milhões de "Trabalhar Cansa". "Foi um grande aprendizado, porque não tínhamos feito nenhum filme com esse tanto de efeito", comenta Dutra.

“As Boas Maneiras” é, em conjunto, a quarta incursão de Dutra e Rojas no terror --depois de "Trabalhar Cansa", "Quando Eu Era Vivo" (só de Dutra) e "Sinfonia da Necrópole" (só de Rojas). O gênero arrebata grandes bilheterias no Brasil com produções estrangeiras e voltou a ser explorado com mais afinco pelo cinema nacional nos últimos anos, mas ainda sem produzir um blockbuster.

“Tem uma luta para encontrar público que é eterna. Acho positivo que tenha filmes de vários gêneros em qualquer país, e estar aparecendo vários gêneros no Brasil é um sinal positivo de que tem uma escola se formando depois de muito trabalho, e isso não pode deixar de ser incentivado”, acredita Dutra. “Nossos filmes circularam em festivais, na Netflix, tiveram seu público. O que a gente tem que lutar é para conseguir encontrar esse público na bilheteria também, mas não só --em todos os lugares. Mas eu estou otimista”.