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Gramado se opõe a Cannes e defende filmes produzidos pela Netflix

Cena de "O Matador", primeiro filme original da Netflix produzido no Brasil - Pedro Saad/Netflix
Cena de "O Matador", primeiro filme original da Netflix produzido no Brasil Imagem: Pedro Saad/Netflix

Carlos Helí de Almeida

Colaboração para o UOL, em Gramado (RS)

21/08/2017 10h26

Lançada em Cannes, em maio passado, a polêmica entre o cinema e serviço streaming chegou ao Brasil com a exibição, na última sexta-feira (18), de “O Matador” na abertura da competição do 45º Festival de Gramado. Dirigido por Marcelo Galvão e produzido pela Netflix, o filme replica a discussão iniciada no tradicional festival francês, que colocou em disputa pela Palma de Ouro deste ano dois títulos encomendados pela gigante americana de vídeo on demand, “Okja”, do sul-coreano Joon Ho, e “The Meyerowitz Stories”, do americano Noah Baumbach.

À época, o cineasta espanhol Pedro Almodóvar, presidente do júri de Cannes. mostrara publicamente seu desconforto em avaliar produções não comprometidas com a exibição em salas comerciais. A organização do festival chegou a anunciar mudanças nas regras de seleção, avisando que a partir do ano que vem só escolherá títulos destinados ao lançamento em cinemas. Almodóvar chegou a dizer que “seria muito estranho premiar um filme que não será exibido numa sala de cinema”.

Presidente honorário do júri do Festival de Gramado deste ano, que termina no próximo sábado (26), o veterano diretor e produtor Cacá Diegues, 77 anos, recusa o discurso do colega espanhol. Para ele, "um filme é um filme, não importa em que tela, bitola ou sistema ele passe": "Os fundamentalistas da exibição em sala vão ter que se acostumar e se adaptar a isso. Ou, então, esconder seus filmes do público contemporâneo", entende Diegues.

O brasileiro já passou por pressão parecida envolvendo plataformas e janelas de exibição para filmes, décadas atrás. "Essa discussão (entre cinema e streaming) é um pouco tola. Parece debate tardio e de sinal trocado de quando os filmes começaram a passar na televisão. Um dia, uma jornalista brasileira rancorosa ‘denunciou’ formalmente, junto à direção do Festival de Berlim, o fato de que meu filme "Dias Melhores Virão", em competição naquele festival, em 1990, já tinha passado na TV do Brasil. Claro que não teve consequência alguma, ninguém ligou".

Segundo o jornalista Marcos Santuário, cocurador, com o crítico Rubens Edwadl Filho, do Festival de Gramado, a seleção de "O Matador" para a competição foi uma forma de "trazer essa discussão para perto da gente, e sentir o que os atores deste processo (de difusão digital), que é global e local ao mesmo tempo, estão pensando sobre o processo que se apresenta". O filme de Galvão é o primeiro longa-metragem de ficção original da Netflix no país, que produziu também "Laerte-se", o primeiro documentário original da marca.

"A polêmica de Cannes foi assunto de reflexão entre os curadores de Gramado. Nosso consenso foi apostar na ousadia e nas transformações que estamos vivendo na contemporaneidade do audiovisual mundial", afirma Santuário. "Com as transformações visíveis nas possibilidades de produção, distribuição e exibição, nos pareceu fundamental abrir essa porta de discussão nos festivais da America Latina. Não somos a França, nem a Europa. Podemos promover debate e pensar o audiovisual com os olhos no mundo, sem deixar de perceber nossas culturas e nossas características específicas, como continente e também como festival".

Cena do filme Okja - Divulgação - Divulgação
Cena do filme Okja, da Netflix, que concorreu em Cannes
Imagem: Divulgação
Em Cannes, o sul-coreano Joon Ho, 47, diretor de “Okja”, minimizou o impacto das afirmações de Almodóvar e a posição da organização do festival. “Não importa o que aconteça com o filme, que falem bem ou mal dele, para mim, está ok, o importante é que ele seja visto e debatido”, desconversou. Em Gramado, o diretor Marcelo Galvão, 43, se alinha ao pensamento de Ho. “Quando fazemos um filme, não nos preocupamos com a plataforma em que ele será consumido. O importante é que seja bem feito”. Tanto “Okja” quanto “The Meyerowitz Stories” saíram do festival francês sem prêmios.

Os concorrentes de Gramado vêem com naturalidade a disputa com um título que não chegará às salas físicas. “Meu filme vai passar na mesma tela que os outros concorrentes, portanto poderá ser apreciado da mesma maneira que os outros. Se ele vai passar em cinema ou não, depois, não é de minha alçada”, diz Paulo Betti, que concorre com “A Fera na Selva”. "Adoro ver filmes na sala de cinema, adorava película, mas não posso reivindicar que só filmes em película possam participar de festivais, nem que filmes sejam feitos com celulares”.

“Alguns dos meus últimos projetos como diretor, como “3 Efes” (2007) e “Menos que Nada” (2012), por exemplo, foram concebidos para distribuição simultânea em diferentes plataformas de difusão, como cinema, TV e DVD. Quem sou eu para criticar que um filme produzido pela Netflix esteja competindo em um festival de cinema”, salienta o gaúcho Carlos Gerbase, 58 anos, que briga pelos Kikitos com “Bio”. “Claro, como realizador, priorizo o ritual de assistir filmes em cinema”.

Autor de “Colegas”, vencedor de Gramado em 2013, Galvão defende os serviços de streaming. “Eles estão salvando o negócio (do cinema). Por causa do VOD, o hábito de baixar filmes na internet, que representa vazamento de renda, diminuiu muito nos últimos anos, porque a oferta de filmes e séries de TV é enorme nesses serviços”, observa o realizador paulista, que chegou a captar recursos para “O Matador” via Fundo Setorial do Audiovisual. “Quando a Netflix entrou, devolvi o que tinha captado. Este é o meu primeiro filme meu sem dinheiro de fomento”.

A produtora Vilma Lustosa, 59 anos, da Total Enterteinment, vai mais além na defesa das novas plataformas digitais de exibição. “O vídeo on demand é irreversível. Ao invés de combatermos a Netflix, temos é que nos preparar melhor para esse tipo de negócio, aperfeiçoando a regulamentação e a metodologia desses processos de difusão”, argumenta Vilma, que também é uma das diretoras do Festival do Rio. “O tema será discutido na edição do Festival do Rio deste ano, dentro dos seminários do Rio Market”.

A Total é responsável por sucessos de bilheteria como “Se Eu Fosse Você 2” (2009), que atraiu mais de 6 milhões de espectadores, e “High School Musical: O Desafio” (2010), em parceria com a Disney. “Foi por causa da Netflix que um filme produzido por nós, o “Amor.com”, lançado primeiro nos cinemas brasileiros em junho passado, chegou a assinantes de 182 outros países no mundo”, lembra Vilma. “O poder de difusão desses serviços é infinitamente maior do que a sala física”.