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Com nudez e masturbação, filme com Camila Morgado vai contra caretice

Camila Morgado em cena do filme Vergel - Divulgação
Camila Morgado em cena do filme Vergel Imagem: Divulgação

Carlos Helí de Almeida

Colaboração para o UOL, em Gramado (RS)

25/08/2017 16h45

Tônica da seleção do 45º Festival de Cinema de Gramado, o protagonismo feminino chega ao seu título mais ousado na noite desta sexta-feira (25), último dia de competição, com a projeção do longa-metragem “Vergel”. Dirigido pela cineasta argentina Kris Niklison e estrelado pela brasileira Camila Morgado (de “Olga”, 2004), o filme é um drama intimista sobre o período de profundo luto de uma mulher, que acabou de enviuvar, e que sai do processo sexual e emocionalmente transformada.

Presente dominante em todo o filme, Camila encarna as dores de uma brasileira que perde o marido em meio a uma viagem de férias a Buenos Aires, e é obrigada a permanecer na cidade até que o corpo do companheiro seja liberado. Durante a solitária temporada em um pequeno apartamento da capital portenha, a personagem, cujo nome nunca é pronunciado, começa a perder a noção de tempo e senso de realidade, até encontrar apoio físico e psicológico na vizinha de baixo (Maricel Álvarez).

“Vergel” é o primeiro filme sobre a condição feminina da competição de Gramado deste ano, cujos vencedores serão conhecidos na noite deste sábado (26), que explora mais abertamente o corpo e a sexualidade da mulher – há várias cenas de nudez. Até agora, o festival já havia tocado em temas como o conflito de gerações nascido do relacionamento entre mãe e filha (“Como Nossos Pais”, de Laís Bodansky), as descobertas da adolescência (“As Duas Irenes”, de Fábio Meira”), e a redenção na terceira idade (“Pela Janela”, de Caroline Leone).

Camila, 42 anos, diz que “Vergel” é um filme “diferente de tudo que já fez antes em cinema”, e que as cenas de nudez não a incomodaram. “Eu as entendi como parte do processo íntimo da personagem, que está atravessada pela dor da perda”, entende a atriz. “O luto é um processo que te deixa em estado de suspensão, e quando você o experimenta sozinha, não faz julgamentos. Entendi que o filme era isso, como o espectador estivesse olhando pelo buraco da fechadura. Não é uma exposição gratuita, é realmente um retrato fiel de alguém que passa por aquela situação de dor”.

Resultado de uma coprodução entre Brasil e Argentina, “Vergel” devolve a sensualidade e o erotismo ao cinema brasileiro. “Nós, brasileiros, sempre tivemos uma relação muito fácil com o corpo. Mas, nos últimos anos, o cinema brasileiro parece ter ficado careta. Até parece que ficar pelado é uma coisa ruim. Por que ela fica pelada? Porque nascemos nus, nossos corpos são bonitos e têm que ser vistos da maneira que é, e essa situação está bem colocado no filme”, defende Camila.

Ela cita “Aquarius”, de Kleber Mendonça Filho, protagonizada por Sonia Braga, 67 anos, como um “ato de resistência” do cinema brasileiro recente. “Os movimentos de extrema direita estão crescendo de forma tão horrorosa, que está nos afastando de coisas essenciais, que fazem parte de nossa matéria”, afirma. “Hoje, o que parece importante são coisas materiais, e não o que gente sente, o olhar o outro, o que acontece a nossa volta. Daí a importância de ‘Aquarius’. O Kleber foi muito feliz nesse filme, e Sonia está maravilhosa, se expõe fisicamente por inteiro”.

Atriz, coreógrafa e diretora teatral, Kris diz que “Vergel” trata “do choque de duas pulsões opostas e complementares: a pulsão da vida e a pulsão da morte”. O filme se passa quase que inteiramente dentro de um pequeno apartamento de 38 metros quadrados, com uma varanda com a mesma metragem, lotada de plantas. É dali que a personagem de Camila vê a cidade, dando a ideia de uma suspensão também geográfica. O contato com o mundo exterior se dá através do porteiro e da vizinha, encarregada de aguar as plantas, e com quem ela eventualmente acaba fazendo sexo. Há também cenas em que a personagem se masturba.

Camila diz que o sexo faz parte “do processo de reconstrução, de renascimento da personagem”. “Acho absolutamente natural que ela se masturbe no filme, porque é uma consequência do luto, uma forma do ser humano mostrar que está vivo”, explica a atriz. “Temos que lembrar que somos criaturas primitivas, e o luto tira esse verniz cultural, e te expõe ao que é básico, prioritário, e o sexo é uma dessas coisas ancestrais, não podemos esquecer dele”.

“Outra coisa interessante em ‘Vergel’ é que o fato de a minha personagem se relacionar sexualmente com a vizinha não tem embute uma questão de gênero. Não passa pela cabeça dúvidas como: ‘Será que sou lésbica?’. Esse questionamento pode até surgir discretamente no filme, de forma sutil, mas ele é transpassado por algo maior, que é a necessidade dela de estar com o outro, a da troca do corpo”, avisa Camila, que elogia a colega de set e a ousadia temática do filme. “A Maricel é uma atriz maravilhosa. E acho que esse filme vem em um bom momento, oferece uma reflexão mais íntima sobre a questão feminina”.

“Vergel” é uma produção modesta, feita com poucos recursos e com a colaboração de toda a equipe. “O apartamento que serviu de locação era da Kris, e as plantas que dão vida à varanda foram trazidas pela própria diretora, ao longo dos anos. Maricel e eu chegamos a usar algumas de nossas roupas como figurino. Não havia um produtor que pudesse parar o trânsito para uma cena de rua. Eu ia para o set de bicicleta, porque não havia dinheiro para luxos de produção. A parte boa disso é que eu chegava no trabalho já aquecida”, ri.

O filme, que ainda não tem distribuidor no Brasil, é um dos destaques de uma das fases mais produtivas da atriz no cinema. Nos próximos meses, Camila será vista no thriller “Animal Cordial”, de Gabriela Amaral, ao lado de Murilo Benício e Irandhir Santos; na comédia “Divórcio”, de Pedro Amorim, coprotagonizada por Benício; e no suspense “Albatroz”, de Daniel Augusto, no qual contracena com Alexandre Nero e Andrea Beltrão, que a atriz descreve como uma versão brasileira de “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças’.

Em novembro, ela entra o set de “Domingo”, de Fellipe Barbosa, autor do premiado “Casa Grande”, ambientado na cidade de Pelotas, cidade no interior do Rio Grande do Sul. A história é ambientada na virada do ano de 2002 para 2003, e é centrada nos preparativos da festa de debutante da neta da matriarca de uma família rica da região, hoje decadente. Enquanto isso, os empregados da casa assistem à posse de Lula pela TV. “É um retrato da transição dos governos de Luiz Fernando Henrique para o de Lula”, resume Camila, que deu uma pausa nos projetos em teatro e TV. “Tinha ficado afastada dos filmes por causa da televisão e dos palcos, agora vou me afastar deles por causa do cinema”.