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Benício sobre intolerância: Voltamos às mesmas e velhas questões idiotas

Lázaro Ramos, Stênio Garcia, Débora Falabella e Murilo Benício na estreia de "O Beijo no Asfalto" na Mostra de São Paulo - Manuela Scarpa/Brazil News
Lázaro Ramos, Stênio Garcia, Débora Falabella e Murilo Benício na estreia de "O Beijo no Asfalto" na Mostra de São Paulo
Imagem: Manuela Scarpa/Brazil News

Natalia Engler

Do UOL, em São Paulo

21/10/2017 14h37

Era 1960 quando Nelson Rodrigues publicou “O Beijo no Asfalto”, mas poderia ser hoje. A peça, escrita para o grupo de teatro de Fernanda Montenegro, fala de ‘fake news’, linchamento virtual e homofobia muitos anos antes de esses termos serem inventados.

Quando Murilo Benício resolveu adaptar o texto para seu primeiro filme como diretor, nem poderia imaginar o quanto a história voltaria a ser atual pouco tempo depois. “Eu cogitei, antes de rodar o filme em 2015, se não era ultrapassado. Mas ainda mais agora, com tudo que a gente tem ouvido falar, vimos que é um filme moderno”, disse o ator e diretor ao UOL, antes da estreia do longa na 41ª Mostra Internacional de São Paulo, nesta sexta (20).

Benício não cita especificamente nenhum caso, mas dá para perceber que ele tem em mente coisas como a pressão para fechar a exposição Queermuseu em Porto Alegre e os protestos contra uma performance no Mam-SP em que uma criança interagiu com um homem nu, mas também a tentativa de legalizar a chamada “cura gay” através de uma decisão judicial.

Todas essas histórias de alguma forma ressoam a peça de Nelson Rodrigues: Arandir (interpretado aqui por Lázaro Ramos) vê um homem ser atropelado no centro do Rio e atende seu último pedido, um beijo na boca; a partir daí, um jornalista sensacionalista e um delegado mal-intencionado criam e difundem pela imprensa uma história falsa de que os dois seriam amantes, o que acaba destruindo a vida de Arandir e de sua família.

Parece que a sociedade anda em looping. Volta e meia a gente está rediscutindo as mesmas e velhas questões idiotas e ultrapassadas que não devíamos nem mais prestar atenção.
Murilo Benício

"E a gente está aí, debruçado, quase de frente para uma nova ditadura", continua ele. "É uma coisa absurda. A gente tem a Fernandona [Montenegro] falando da época em que fazia essa peça, em que gente da plateia levantava e falava: 'Protesto em nome da família brasileira!'. Isso não era nem 1970, acho, e a gente está em 2017 vivendo isso. Então, é uma coincidência boa para o filme, mas muito infeliz para a nossa história como sociedade”, acredita.

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Débora Falabella, casada com Benício e intérprete da mulher de Arandir, Selminha, também se impressionou com a atualidade que o filme ganhou, em tempos de “fake news e linchamentos virtuais”. “O filme tem, além da história original do Nelson, as rodas de leitura, onde a gente tem o Amir Haddad (diretor de teatro) e a Fernanda Montenegro falando sobre como o texto foi montado naquela época, e eles falam de censura. Eu falo que os grandes autores têm esse poder de continuar com os textos muito atuais, acho que o Nelson é um desses. Esse filme foi feito em 2015, então eu vi muito, e vi de novo outro dia e fiquei impressionada. Pensei: 'Nossa, parece que a gente está falando de agora'”.

Lázaro Ramos concorda. “Isso mostra como a gente apesar de cometer erros em alguns momentos, volta a repeti-los. Tem um lado que mostra a genialidade do texto do Nelson Rodrigues, que mostra muito das nossas entranhas, dos nossos preconceitos. E por outro lado tem algo de triste uma obra como essa ainda se tornar atual. Significa que a gente precisa refletir muito no que diz respeito à maneira como olha o outro, os desejos do outro e as características do outro”, acredita.

Segundo ele, assistir ao filme o fez “pensar um pouquinho mais o que é que a gente pode fazer para o tempo ficar menos sombrio”.

Lázaro Ramos em cena de "O Beijo no Asfalto", dirigido por Murilo Benício - Divulgação - Divulgação
Lázaro Ramos em cena de "O Beijo no Asfalto"
Imagem: Divulgação

Stênio Garcia, que interpreta o sogro do protagonista, com quem tem uma relação complicada, também apontou a relação do texto com o que estamos vivendo. “Nesse momento que se discute a homossexualidade como doença, esse absurdo que está surgindo aí, que a natureza do homem de repente se transformou num câncer, acho que 'O Beijo no Asfalto' veio trazer à tona a discussão sobre isso”, apontou, durante debate sobre o filme.

Fernanda Montenegro, que originalmente encomendou a peça a Nelson e interpretou Selminha na montagem de 1961 do Teatro dos Sete, também está no filme como uma vizinha fofoqueira, e faz ponderações poderosas durante as leituras do texto, que Benício mostra no longa, mescladas com outras imagens de bastidores e com a história ficcional de “O Beijo no Asfalto”. “A gente vive num mundo muito liberal, mas não pode esquecer que o negócio do pecado é traumatizante. Ainda estamos há 60 anos atrás”, diz, perto do fim do filme, a atriz, que recentemente gravou um vídeo em defesa da liberdade de expressão.

“Tem essa coisa que eles falam no filme, a Fernanda e o Amir Haddad, que é resistir”, conclui Débora. “A gente precisa resistir. Na arte, no teatro, no cinema, precisamos resistir e aguentar firme”.

Serviço:

"O Beijo no Asfalto"
Quando:
dom. (22), 14h (Instituto Moreira Salles); seg. (23), 15h45 (Reserva Cultural 2)