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Fanboys e machismo: A paródia de "Star Trek" em "Black Mirror"

Cena de "USS Callister", episódio da quarta temporada de "Black Mirror" - Jonathan Prime / Netflix
Cena de "USS Callister", episódio da quarta temporada de "Black Mirror"
Imagem: Jonathan Prime / Netflix

Beatriz Amendola

Do UOL, em São Paulo

29/12/2017 10h00

Quando o primeiro teaser da quarta temporada de “Black Mirror” saiu, em outubro, foi impossível não estranhar as cenas que faziam uma referência explícita à série clássica de “Star Trek” com uma nave, seus uniformes coloridos e uma mulher de pele azul. O que diabos, afinal, uma aventura espacial tinha a ver com uma série que sempre teve como principal mote explorar as consequências exageradas, mas assustadoramente realistas, da nossa relação com a tecnologia?

Muito, na verdade. Mas de uma forma que ninguém esperava – bem no estilo “Black Mirror” de ser.

Vamos discutir o episódio em detalhes abaixo. Se você não quer saber o que acontece, volte mais tarde.

Quando começa “USS Callister”, o primeiro episódio da nova temporada, os primeiros minutos levam a crer que estamos em uma genuína paródia de “Star Trek”: uma aventura acaba de ser concluída, e o capitão Robert Daly (Jesse Plemons) é efusivamente celebrado por seus subordinados e troca beijos românticos com as duas tripulantes mulheres, como uma versão exagerada do capitão Kirk eternizado por William Shatner. Daly, aliás, também tem um topete loiro.

Mas, como se trata de “Black Mirror”, a realidade vem sem pedir licença: a USS Callister, na verdade, só existe dentro de um jogo em realidade virtual, chamado “Infinity”, e Daly é o criador desse universo. E, em carne e osso, a vida é menos glamourosa para ele. Ignorado por Elena, funcionária da recepção, e maltratado por seu sócio, Walton (Jimmi Simpson), ele fica radiante ao receber uma fagulha de atenção da nova engenheira da empresa, Nanette (Cristin Milioti).

De novo: estamos falando de “Black Mirror”, então nada é o que parece. Aos poucos, fica claro que todos os tripulantes têm uma correspondência na vida real e que Daly está longe de ser um pobre coitado injustiçado. O que já era estranho fica ainda pior quando é revelado que seus subordinados na USS Callister são, na verdade, clones, trazidos ao mundo digital com as personalidades e as memórias de suas contrapartes no mundo real.

Em comum, todos desagradaram de alguma forma a Daly: além de Walton, estão lá os funcionários que não agiram como ele queria, a mulher que questionou seus avanços e Nanette, cujo único crime foi dizer que não tinha interesse amoroso no patrão e que apenas apreciava seu trabalho.

Como a série já bem estabeleceu em suas temporadas anteriores, o problema não está necessariamente na tecnologia que cria clones no mundo virtual – ela é assustadora, mas poderia ser usada para o bem, a exemplo do que acontece em “San Junipero”. Aqui, a questão é o uso perturbador que Daly faz dela, como uma arma de vingança eterna que lhe permite exercer um poder megalomaníaco, afagar seu frágil ego e provar sua masculinidade enquanto, no mundo real, ele finge ser um “cara legal”.

Com um timing invejável, o roteiro de Charlie Brooker mira (e acerta) em dois temas quentíssimos: o machismo no ambiente de trabalho e a cultura tóxica que surge em certos nichos de fãs excessivamente fervorosos. Basta pensar no grupo que admitiu ter atacado repetidamente “Star Wars: Os Últimos Jedi” na web para protestar, entre outros, contra a inclusão de novas personagens femininas na franquia. Não é difícil acreditar que Daly se sentiria em casa entre tais pessoas.

Para além das discussões relevantes, “USS Callister” é o grande destaque da quarta temporada de “Black Mirror”. Uma aventura épica de mais de 1h16 de duração, e com uma das fotografias mais belas da série, o episódio equilibra o tom cínico com doses de ação, humor e otimismo.

As atuações são um show à parte. Jesse Plemons, de “Fargo” e “Breaking Bad”, impressiona com sua interpretação das duas faces de Robert Daly, e Jimmi Simpson (“Westworld”) traz humor e drama com seu retrato do sócio do vilão. Quem mais se sobressai, entretanto, é Cristin Milioti, a mãe de “How  I  Met  Your  Mother”, como a relutante adição à nave virtual.

“Callister” pode não ser romântico como “San Junipero”, mas é forte candidato a ser o mais falado da nova temporada -- e deve ser forte concorrente às premiações da TV em 2018.