Documentário relembra filmes de Vittorio de Sica
SÃO PAULO - Muitos predicados se aplicam a Vittorio de Sica (1901-1974): ator, roteirista, diretor, co-inventor do neorrealismo. Não só o cinema italiano, como o mundial têm uma dívida impagável com este artista versátil, capaz de transitar da comédia ao drama, diante ou atrás das câmeras com a mesma paixão com que se entregava ao vício do jogo, que abalou suas finanças.
Uma parte da vida e da obra desse homem apaixonado e contraditório está no documentário "Vittorio de Sica - Minha Vida, Meus Amores", de Mario Canale e Annarosa Morri, que estreia em circuito nacional. A mesma dupla de diretores assinou o filme "Marcello - Uma Vida Doce" (2006), outro documentário, este sobre o ator Marcello Mastroianni.
Seguindo um roteiro sem maior ousadia, o filme relembra que o talento interpretativo de De Sica foi descoberto por uma certeira intuição da bailarina russa Tatiana Pavlova - em cuja companhia teatral ele foi contratado como figurante, por sugestão dela. Ele nunca esqueceu esta primeira chance, mandando frequentemente buquês de flores a Pavlova.
Galã cômico do cinema italiano dos anos 30 - a chamada era do "telefone branco", aparelho que sempre aparecia em cena - ele passa à história como um dos pais do neorrealismo.
Um encontro acidental entre os dois diretores, relatado no filme pelos filhos de De Sica, dá conta da espontaneidade do movimento que mudou o cinema italiano e teve reflexos pelo mundo todo.
Roberto Rossellini estava tomando sol um dia, na escadaria da Piazza di Spagna, no centro de Roma. De Sica passou e perguntou-lhe o que fazia no momento. Rossellini contou-lhe que preparava um drama com Anna Magnani e em que o ator cômico Aldo Fabrizi faria o papel de um padre. De Sica, por sua vez, disse ao colega que planejava um filme sobre os meninos-engraxates da via Vêneto. O resultado: os dois filmes-farois do movimento, "Ladrões de Bicicleta" (1948), de De Sica, e "Roma, Cidade Aberta" (1945), de Rossellini.
A aclamação mundial a "Ladrões de Bicicleta" só não atingiu os políticos italianos. Os documentaristas entrevistam o ex-primeiro ministro Giulio Andreotti, que criticou o filme justamente por expor internacionalmente a "roupa suja" da Itália, ou seja, a pobreza do país naquele momento.
A Democracia Cristã, partido de Andreotti, na época criticou o diretor por fazer um filme "sobre bicicletas num momento em que o país estava crescendo".
A ironia com a miopia dos políticos passa breve no filme, que se ocupa, felizmente, de depoimentos melhores - como dos cineastas Ettore Scola, Woody Allen, Ken Loach, Mike Leigh, Clint Eastwood, das atrizes Sophia Loren e Shirley McLaine, do produtor Dino di Laurentiis, do roteirista Tonino Guerra, do diretor de fotografia Giuseppe Rotunno, do crítico Tullio Kezich e de muitos outros, capazes de elaborar melhor sua admiração pelo cineasta, bem como lembrar momentos curiosos de sua vida.
Melhor ainda é uma longa entrevista de De Sica à emissora italiana de televisão RAI, em 1960, que pontua o filme. Dela participa o roteirista Cesare Zavattini, parceiro inseparável do diretor em filmes como o citado "Ladrões de Bicicleta" e também "Duas Mulheres" (1960), que deu o Oscar de melhor atriz a Sophia Loren, "Milagre em Milão" (51), "Umberto D" (52) e "O Jardim dos Finzi-Contini", vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim em 1971.
O documentário guarda espaço especial às deliciosas comédias do diretor que firmaram a dupla Marcello Mastroianni e Sophia Loren, como "Ontem, Hoje e Amanhã" (63). Só por essa dupla, De Sica já teria um lugar garantido no céu.
(Por Neusa Barbosa, do Cineweb)
* As opiniões expressas são responsabilidade do Cineweb
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