Com Tilda Swinton, "Precisamos Falar sobre o Kevin" toca em traumas norte-americanos
A ausência de "Precisamos Falar sobre o Kevin" na lista dos indicados ao Oscar é, ao mesmo tempo, uma injustiça e um indício. O complexo filme da escocesa Lynne Ramsay - seu terceiro, e primeiro a estrear em circuito comercial no Brasil - fala muito diretamente de um problema que, há anos, é um fantasma que ronda os pais e escolas dos Estados Unidos e, nos últimos tempos, não apenas lá: massacres estudantis.
A injustiça fica por conta, especialmente, da falta de indicação de Tilda Swinton, e o indício é o de que o filme fala de uma questão com a qual os norte-americanos ainda não sabem lidar.
Baseado no incendiário romance homônimo da norte-americana Lionel Shriver, "Kevin" é um filme sobre a maternidade, sobre aquela velha falácia "ser mãe é padecer no paraíso". Se isso fosse verdade, a personagem de Tilda, Eva, precisaria reencontrar o Éden que lhe foi usurpado com o nascimento do primeiro filho, Kevin (Rock Duer, quando pequeno). O relacionamento dela com o marido, Franklin (John C. Reilly, de "Chicago"), ia bem, até a chegada do menino que lhe roubou a vida e lhe deu em troca uma angústia crescente.
O romance, que consiste em cartas de Eva para o marido após a tragédia, e o filme argumentam que nem toda maternidade é feliz. Eva, aparentemente, nunca quis ser mãe e isso se torna um fardo para ela. Mas teria Kevin nascido mau ou a criação de Eva e o excesso de permissividade de Franklin o teriam transformado num menino perverso? Não é um debate simples, e Lynne e seu corroteirista Rory Kinnear não se aventuram a esboçar uma solução - o que seria ingenuidade do filme. Nesse sentido, "Kevin" beira um estudo de caso, mostrando o que aconteceu com esse garoto - certamente outras pessoas, nas mesmas circunstâncias, agiriam de forma diferente.
A relação sempre tensa entre Eva e Kevin (quando adolescente, interpretado por Ezra Miller, da série de TV "Californication") é o que pauta a trama, que transita entre o presente - quando ele está preso - e o passado - a vida em família antes da tragédia. Tal qual o romance, o filme descortina os fatos aos poucos. Entende-se logo o que aconteceu, mas só mais tarde se compreende como aconteceu, suas dimensões e implicações. É uma estratégia arriscada para uma narrativa, que é bem articulada por Lynne - diretora dada a criar imagens marcantes que nem sempre estão mostrando o belo.
A filmografia de Lynne mostra o seu gosto pelo estranhamento e pelas rupturas. Seu primeiro longa, "Ratcatcher" (1999), passa-se numa Glasgow do começo da década de 1970, durante um verão seco, com lixeiros em greve, quando sacos de lixo e ratos proliferam pelas ruas da cidade. Acidentalmente, um garoto mata o amigo afogado num córrego imundo. Em "Morven Callar", a personagem-título chega em casa na noite de Natal e encontra o namorado que se matou e deixou um romance para ser publicado. Ela finge que o livro é seu, manda para um editor e sai pela Europa em busca de raves.
Em comum, os três filmes de Lynne têm, entre outras coisas, mortes como ponto de partida. Embora em "Kevin" seja a chegada, a história é traçada do presente olhando para trás, a partir da carnificina no colégio promovida pelo filho de Eva. A diretora cria imagens - conjugadas a uma trilha sonora - que transitam entre o lúdico e o grotesco. A primeira cena é o melhor exemplo disso. Na abertura do filme, Eva está coberta de um material vermelho e viscoso. Poderia muito bem ser o sangue de inocentes - mas é simplesmente uma Tomatina, a festa na Espanha onde as pessoas se divertem jogando tomates umas nas outras (a personagem de Tilda é autora de guias de viagem).
A trilha sonora do longa, por sua vez, dá o tom ao trânsito entre os dois extremos. Músicas antigas, como de Budd Holly ("Everyday") e Beach Boys ("In My Room"), fazem parte da seleção, mas nenhuma soa tão forte quanto uma chamada "Mother's Last Word to Her Son". Na música cantada por Washington Philips, um filho se lembra de sua mãe e do amor mútuo. Certamente não seriam Kevin e Eva, não fosse pelo arrebatador final do filme.
A questão que, sabiamente, o longa levanta é: uma pessoa pode ser responsabilizada pelos atos de outra? Mesmo não sendo uma mãe-modelo, Eva pode ser culpada pelas atitudes do filho? Alguns personagens pensam que sim - muitas vezes, ela mesma se martiriza, embora tente levar uma vida normal (se é que isso seja possível após tal tragédia). Tilda - grande atriz inglesa que conta em seu currículo com trabalhos como "Um Sonho de Amor", "Flores Partidas" e "Zona de Conflito" - é uma presença magnética na tela. O seu aspecto andrógino (mais explorado em outros filmes, especialmente "Orlando") é hipnótico, mas o que seduz, enquanto personagem, são as dúvidas e martírios que acontecem dentro dela mesma. Por outro lado, Reilly é o contraponto perfeito, como o pai tão apaixonado pelo filho quanto cego.
Este não é um filme fácil de se ver. E até pode gerar um sentimento de culpa. As interpretações, a direção, a história são tão boas que, eventualmente, alguém pode se sentir mal por conta do prazer cinematográfico que tudo isso gera, em contrapartida ao tema espinhoso. Por outro lado, a discussão e implicações que levanta fazem pensar que ainda vamos falar sobre o "Kevin" por muito tempo. Ou, pelo menos, deveríamos.
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