Cláudio Assis faz retrato poético do Recife em seu terceiro longa, "Febre do Rato"
O Recife que se vê nos filmes do diretor pernambucano Cláudio Assis é sempre inesperado. Do colorido doentio de "Amarelo Manga" (2002) à violência quase insuportável de "Baixio das Bestas" (2006), a cidade que surge na tela sempre se afasta não só dos cartões postais, como das experiências diretas que se tenha da solar capital de Pernambuco.
A doçura pernambucana ressurge em parte em "Febre do Rato", terceiro e premiado longa do cineasta, em que a primeira estranheza vem do fato de as paisagens do Recife serem reveladas em preto e branco - numa fotografia linda do veterano Walter Carvalho que redescobre a cidade pelo seu avesso.
De novo, Assis se debruça sobre a periferia, o mangue, as favelas, afirmando desde os primeiros fotogramas a profunda divisão do Recife, símbolo de uma desigualdade intrínseca aos quatro cantos do País.
Bem mais do que seus longas anteriores, aqui Assis procura a beleza e a extrai da poesia, recorrendo a vários poemas escritos por seu habitual roteirista Hilton Lacerda - autor também deste roteiro - e que na ficção aparecem como obras de Zizo (Irandhir Santos), o poeta marginal que edita o tabloide "Febre do Rato" - uma expressão popular do Recife para designar "fora de controle". Ou aquilo que, na antiga canção de Chico Buarque, "não tem vergonha, nem nunca terá, o que não tem juízo".
Zizo é assim, um personagem anárquico, apaixonado, intenso, extremo, que desafia a lógica e o bom senso. Imprime seu jornalzinho numa prensa primitiva e sai pelas ruas, com um carro velho, microfone acoplado, propagandeando os versos do dia. Menestrel sem patrão, vive num fundo de quintal, perto da mãe (Ângela Leal) e fazendo a alegria de duas maduras vizinhas, Stella Maris (Maria Gladys) e dona Anja (Conceição Camarotti), a quem não nega seu corpo, satisfazendo-as na água de um tanque que é o centro dos prazeres de seu pequeno mundo.
Neste espaço em que a transgressão comanda, o casal que Zizo mais admira é formado por Pazinho (Matheus Nachtergaele) e Vanessa (Tânia Granussi), um travesti. Os dois vivem uma relação conturbada, entre traições e ciúmes, se largam, voltam, se agridem, se completam de um jeito alucinado e imperfeito que cai sob medida para a visão poética de Zizo - embora nessa aliança amorosa haja também muita dor.
O próprio Zizo vai beber sua taça de fel ao apaixonar-se pela jovem Eneida (Nanda Costa), uma colegial que não se enquadra muito no seu ambiente, mas ainda assim faz o poeta perder a cabeça, especialmente por não corresponder à sua paixão. Eneida está longe de ser pudica, mas o poeta não a atrai fisicamente e isto se torna uma razão para seu desespero.
Nesse universo de personagens marginais, que vivem à procura de festa e liberdade, Zizo lidera uma "anti-manifestação da Independência", conduzindo seus amigos ao centro da cidade, num 7 de setembro. Nessa sequência - que envolve nudez e um confronto em parte real com a polícia -, o filme evoca uma conexão com o passado, com o Cinema Novo, com um cinema brasileiro mais visceral e arriscado.
É o filme mais bonito de Assis, de uma beleza crua e rude, mas que ele encontra de verdade, tirando o belo da pedra, de onde não se procura, nem se espera, mas está lá. Talvez a sua ousadia incomode - há cenas que escandalizarão, quem sabe, uns tantos -, mas é o tipo de história que precisa ter o direito de também existir.
Estreando em São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, "Febre do Rato" foi o grande vencedor do Festival de Paulínia 2011 - com oito prêmios, inclusive melhor ficção, ator e atriz - e também foi exibido no festival holandês de Roterdã (de cujo fundo, Hubert Bals, saiu parte de seu financiamento).
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